Aspectos relevantes para a observação
da relação fala e escrita
1. Na tradição filosófica ocidental, nos acostumamos a
distinguir entre natureza e cultura, atribuindo à cultura tudo
aquilo que não se dá naturalmente. No entanto, hoje, esta
distinção está cada vez mais difícil de ser mantida, como,
de resto, acontece em todas as dicotomias. O certo é que a
cultura é um dado que torna o ser humano especial no
contexto dos seres vivos. Mas, o que o torna ainda mais
especial é o fato de ele dispor de uma linguagem simbólica
articulada que é muito mais do que um sistema de
classificação, pois é também uma prática que permite que
estabeleçamos crenças e pontos de vista diversos ou
coincidentes sobre as mesmas coisas. Daí ser a língua um
ponto de apoio e de emergência de consenso e dissenso,
de harmonia e luta. Não importa se na modalidade escrita
ou falada.
2. Nessa perspectiva, seria útil ter presente que, assim
como a fala não apresenta propriedades intrínsecas
negativas, também a escrita não tem propriedades
intrínsecas privilegiadas. São modos de representação
cognitiva e social que se revelam em práticas específicas.
Postular algum tipo de supremacia ou superioridade de
alguma das duas modalidades seria uma visão equivocada,
pois não se pode afirmar que a fala é superior à escrita ou
vice-versa. Em primeiro lugar, deve-se considerar o aspecto
que se está comparando e, em segundo, deve-se
considerar que esta relação não é homogênea nem
constante.
3. Do ponto de vista cronológico, a fala tem grande
precedência sobre a escrita, mas do ponto de vista do
prestígio social, a escrita é vista como mais prestigiada que
a fala. Não se trata, porém, de algum critério intrínseco nem
de parâmetros linguísticos e sim de postura ideológica. Por
outro lado, há culturas em que a fala é mais prestigiada que
a escrita.
4. Mesmo considerando a enorme e inegável importância
que a escrita tem nos povos e nas civilizações letradas,
continuamos povos orais. A oralidade jamais desaparecerá
e sempre será, ao lado da escrita, o grande meio de
expressão e de atividade comunicativa. A oralidade
enquanto prática social é inerente ao ser humano e não
será substituída por nenhuma tecnologia. Ela será sempre a
porta de nossa iniciação à racionalidade e fator de
identidade social, regional, grupal dos indivíduos.
(Luís Antônio Marcuschi. Da fala para a escrita. São Paulo: Editora
Contexto, 2001, p. 35-36)