Para responder à questão, leia o
texto seguinte.
Sobre a alagoanidade
Extraído do livro “Notas Sobre Leitura”, de Sidney Wanderley
Certa feita, em conversa com a jornalista Janayna
Ávila, disse-lhe considerar a alagoanidade um nativismo
para broncos. De fato, exaspera-me esta questão –
monocórdia, obsessiva, recorrente e estéril – da identidade
de um povo, qualquer que seja ele. Acrescentei gaiatamente
que a viçosanidade – atributo inconfundível de qualquer
bípede implume nascido em Viçosa de Alagoas – consiste
no amor desmedido às bolachas de padaria, à xistose e à
zabumba. Aliás, esse troço de amor desmedido e acrítico ao
torrão natal é coisa que fede e da qual desconfio
visceralmente.
Tomo sempre um susto danado quando meu
interlocutor, com ares de sociólogo, antropólogo, etnólogo ou
besteirólogo, invariavelmente posudo e sisudo, assevera-me
existir a ironia tipicamente alagoana, a maledicência
inconfundivelmente caeté ou o humor característico de quem
por aqui nasceu. Não ignoro que há uma diferença nítida e
notória entre o humor inglês e o humor italiano; mas o que
diferencia o humor de um alagoano do humor de um
capixaba ou de um sergipano? Acaso rimos mais
graciosamente que esses outros, ou emitimos algum som
inconfundível quando gargalhamos?
Haver uma ironia, um humor, uma maledicência, uma
violência ou um ressentimento inconfundivelmente
alagoanos parece-me um disparate tão considerável quanto
haver um futebol alagoano, uma poesia alagoana ou uma
cardiologia alagoana. O que há é gente a jogar bola, a
compor poemas ou a distrair-se remuneradamente com cateteres nos limites desta modestíssima unidade federativa.
Arrisco imaginar o muxoxo de desdém e o coice de
impaciência que Graciliano Ramos, nosso ícone maior, não
dispensaria a quem fosse importuná-lo com essa conversa
mole de alagoanidade. A alagoanidade do caráter predatório
e tirânico de Paulo Honório; a alagoanidade lastimável e
prepotente do soldado amarelo; a alagoanidade agônica da
cachorra Baleia, à beira da morte, a sonhar com um mundo
repleto de preás; a alagoanidade adiposa e burguesa de
Julião Tavares acoplada à alagoanidade ressentida e
assassina de Luís da Silva; a alagoanidade mendicante e
fétida de Venta-Romba... Melhor deixar em paz o homo
quebrangulensis.
Ocorre-me agora um dilema visceral: opto pela
concisão (“as mesmas vinte palavras”) de nosso romancista
maior ou pela incontinência verbal de nosso poeta maior, o palmarino Jorge de Lima? Deverei, de imediato, atribuir
alguma média ponderada a suas obras e a seus espíritos e
obter algum valor que exprima com exatidão e fidedignidade
a alma média do homo alagoensis, afogada por inteiro numa
mescla de nossos pontos/homens culminantes. Assim,
decerto obterei por fim essa tão apregoada quanto fictícia
alagoanidade – força vital, espírito motor, éter, suprassumo,
élan, quinta-essência – que nos desconfunde e anima.
Que pecado para um alagoano típico preferir o
primeiro (“há sempre um copo de mar” – não
necessariamente alagoano – “para um homem navegar”) e o
quarto cantos de Invenção de Orfeu (“O perigo da vida são
os vácuos”), bem como a difícil decifração do Livro de
sonetos, ao Jorge de Lima dengoso e aliciante dos Poemas
negros e ao devoto fervoroso de A túnica inconsútil. Que ato
bárbaro de antialagoanidade – digno talvez de um fim similar
ao que obtiveram Zumbi, Julião Tavares, Baleia e Calabar –
preferir a viagem ao lado da vaca palustre e bela e do cavalo
erudito e em chamas, ao passeio pelo parnasianismo
sentencioso e de fácil consagração de “O acendedor de
lampiões”!
Advogo, sim, uma alagoanidade esculhambada,
disforme, banguela, antropofágica (com direito a sardinhas e
Sardinha), macunaímica (“Ai! que preguiça!” desse papo
infausto e broncoposudo de identidade cultural etc. e coisa e
tal), desbragadamente inclusiva e insaciavelmente
cosmofágica. Uma alagoanidade tal a de dona Nise da
Silveira, que soube unir os tórridos loucos e os gatos
tupiniquins à psicologia dos arquétipos junguianos, oriundos
da fria e fleumática Suíça. Uma alagoanidade que acolha o
cego Homero e o boêmio Zé do Cavaquinho, os epilépticos
Dostoiévski e Machado de Assis e o desassossegado Breno
Accioly, a mitologia nórdica e o reisado, a madeleine
proustiana e as bolachas Pirauê da padaria de Viçosa, o
puteiro do finado Mossoró e as libidinagens de Molly Bloom,
os travestis da Pajuçara e os versos de Whitman e Lorca, os
labirintos borgianos e os descaminhos da feira do Rato, o
mujique russo e o sertanejo de Dois Riachos, os feitiços
verbais de Guimarães Rosa e o segredo sagrado do
camarão do Bar das Ostras, o decassílabo camoniano e o
martelo agalopado dos cantadores de viola da minha já
recuada infância.
Uma alagoanidade que me permita ser os trezentos,
os trezentos e cinquenta que trago em mim desde a
nascença e que se finarão em breve, felizmente, pois viver
por vezes é um bocado custoso e prolongado. Ai, que
preguiça! e que vontade de adormecer, profundamente, em
Viçosa, na confluência dos rios Paraíba, Tejo, Ganges,
Mississippi e Eufrates.
P.S.: Dez ou doze coisas em que creio piamente: 1) na
metempsicose; 2) nas almas motrizes dos planetas e do Sol;
3) no dilúvio universal; 4) nos vórtices cartesianos; 5) na
hereditariedade dos caracteres adquiridos; 6) no
geocentrismo: 7) na finitude do universo: 8) na teoria do
flogisto; 9) no saci-pererê, no lobisomem e na caipora; e, last
but not least, 10) na alagoanidade.
(Disponível
em:<http://www.agendaa.tnh1.com.br/vida/literatura/7576/2018/12/1existe-uma-alagoanidade-leia-artigo-do-poeta-sidney-wanderleyem-livro-lancado-nesta-quarta>. Acesso em 5/3/2018)