Questão fa49154a-00
Prova:UEMG 2019
Disciplina:Português
Assunto:Interpretação de Textos, Pronomes demonstrativos, Pronomes possessivos, Pronomes pessoais oblíquos, Coesão e coerência, Noções Gerais de Compreensão e Interpretação de Texto, Morfologia - Pronomes

UM CÃO, APENAS

Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim — plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito —, eis-me no patamar. E a meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal do pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. É um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas. Com um grande esforço acaba de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem... Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves: acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir. Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para um tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar. E ele estava na minha frente inábil, como envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica. Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens. Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as escadas e as suas rampas, com as plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito, até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado esquerdo, desapareceu. Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve ao meu alcance; talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; ameio, apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim humilhado, e tão digno, no entanto: como alguém que respeitosamente pede desculpas de ter ocupado um lugar que não era seu. Depois pensei que todos nós somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta. E há o dono da casa, e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.

(Cecília Meireles. Janela mágica. São Paulo: Moderna, 1988.)


Entre as palavras e expressões destacadas no texto, estão listadas abaixo aquelas que se referem ao cãozinho:

I. “Eu não lhe digo nada (...)”.

II. “Deixei-o partir, assim humilhado (...)”

III. “(...) um cãozinho triste interrompe seu sono (...)”.

IV. “Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade (...)”.

V. “Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse (...)”.


Os trechos em que as expressões negritadas referem-se apenas ao cãozinho são

A
I, II e III.
B
I, II e IV.
C
II, III e V.
D
II, IV e V.

Gabarito comentado

P
Paula SilvaMonitor do Qconcursos

Tema central: A questão aborda interpretação de texto e referência pronominal, exigindo que o candidato identifique corretamente a quem se referem pronomes e expressões no contexto do texto, conforme a norma-padrão da Língua Portuguesa.

Justificativa da Alternativa Correta (A):
Os itens I, II e III apresentam expressões que se referem apenas ao cãozinho, de maneira exclusiva e direta:

I. "lhe": pronome pessoal oblíquo empregado como objeto indireto, indicando que a ação (não dizer nada) é direcionada ao cãozinho.
II. "o": pronome oblíquo átono de objeto direto, representando o cãozinho no contexto da frase.
III. "seu sono": pronome possessivo, que nesta frase claramente remete ao próprio cãozinho (é o sono dele que é interrompido).

Nessa análise, utilizamos critérios claros recomendados em gramáticas de referência padrão, como Bechara e Cunha & Cintra, confirmando que a correta identificação de referente pronominal é fundamental para a clareza da interpretação.

Análise das Alternativas Incorretas:

B) I, II e IV: O item IV fala de “esta humana infelicidade”, expressão que se refere ao sentimento do eu lírico, não ao cãozinho.
C) II, III e V: O item V contém pronomes (dele, lhe, o) que se referem ao cãozinho sim, mas incluem a ação de terceiros e tornam a relação mais ampla, não sendo exclusiva em todos os usos.
D) II, IV e V: Novamente, IV não se refere ao cãozinho e V, apesar das referências, não é exclusivamente sobre o cãozinho.

Dica de prova: Sempre observe o contexto imediato antes de ligar pronomes ao referente: busque o termo mais próximo no texto e avalie se faz sentido gramatical e semanticamente, evitando distrações por termos emocionalmente marcantes.

Regra gramatical base: Pronomes pessoais oblíquos ("o", "lhe") e possessivos ("seu") apontam para sujeitos ou objetos já citados e devem estar coerentes com o contexto. (Ver: Moderna Gramática Portuguesa, Bechara; Nova Gramática do Português Contemporâneo, Cunha & Cintra).

Portanto, correta: Alternativa A.

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