Os recursos expressivos, como as figuras de linguagem, fazem-se relevantes para a
compreensão e interpretação de textos literários, levando o emissor a um uso mais eficaz
da linguagem, que é um fenômeno social. A partir dos comentários sobre esses recursos,
analise as proposições a seguir e marque a que NÃO representa seu uso:
Texto I
Feliz por nada
Geralmente, quando uma pessoa exclama “Estou tão feliz!”, é porque engatou um novo
amor, conseguiu uma promoção, ganhou uma bolsa de estudos, perdeu os quilos que
precisava ou algo do tipo. Há sempre um porquê. Eu costumo torcer para que essa
felicidade dure um bom tempo, mas sei que as novidades envelhecem e que não é seguro
se sentir feliz apenas por atingimento de metas. Muito melhor é ser feliz por nada.
Feliz por estar com as dívidas pagas. Feliz porque alguém o elogiou. Feliz porque
existe uma perspectiva de viagem daqui a alguns meses. Feliz porque você não magoou
ninguém hoje. Feliz porque daqui a pouco será hora de dormir e não há lugar no mundo
mais acolhedor do que sua cama. Mesmo sendo motivos prosaicos, isso ainda é ser feliz
por muito.
Feliz por nada, nada mesmo? Talvez passe pela total despreocupação com essa busca.
Essa tal de felicidade inferniza. “Faça isso, faça aquilo”. A troco? Quem garante que todos
chegam lá pelo mesmo caminho?
Particularmente, gosto de quem tem compromisso com a alegria, que procura relativizar
as chatices diárias e se concentrar no que importa pra valer, e assim alivia o seu cotidiano e
não atormenta o dos outros. Mas não estando alegre, é possível ser feliz também. Não
estando “realizado”, também. Estando triste, felicíssimo igual. Porque felicidade é calma.
Consciência. É ter talento para aturar o inevitável, é tirar algum proveito do imprevisto, é
ficar debochadamente assombrado consigo próprio: como é que eu me meti nessa, como é
que foi acontecer comigo? Pois é, são os efeitos colaterais de se estar vivo.
Benditos os que conseguem se deixar em paz. Os que não se cobram por não terem
cumprido suas resoluções, que não se culpam por terem falhado, não se torturam por terem
sido contraditórios, não se punem por não terem sido perfeitos. Apenas fazem o melhor que
podem.
Se é para ser mestre em alguma coisa, então que sejamos mestres em nos libertar da
patrulha do pensamento. De querer se adequar à sociedade e ao mesmo tempo ser livre.
Adequação e liberdade simultaneamente? É uma senhora ambição. Demanda a energia de
uma usina. Para que se consumir tanto?
A vida não é um questionário de Proust. Você não precisa ter que responder ao mundo
quais são suas qualidades, sua cor preferida, seu prato favorito, que bicho seria. Que mania
de se autoconhecer. Chega de se autoconhecer. Você é o que é, um imperfeito bemintencionado
e que muda de opinião sem a menor culpa.
Ser feliz por nada talvez seja isso.
MEDEIROS, Martha. Felicidade crônica. 15.ed. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 86-87.
Texto I
Feliz por nada
Geralmente, quando uma pessoa exclama “Estou tão feliz!”, é porque engatou um novo amor, conseguiu uma promoção, ganhou uma bolsa de estudos, perdeu os quilos que precisava ou algo do tipo. Há sempre um porquê. Eu costumo torcer para que essa felicidade dure um bom tempo, mas sei que as novidades envelhecem e que não é seguro se sentir feliz apenas por atingimento de metas. Muito melhor é ser feliz por nada.
Feliz por estar com as dívidas pagas. Feliz porque alguém o elogiou. Feliz porque existe uma perspectiva de viagem daqui a alguns meses. Feliz porque você não magoou ninguém hoje. Feliz porque daqui a pouco será hora de dormir e não há lugar no mundo mais acolhedor do que sua cama. Mesmo sendo motivos prosaicos, isso ainda é ser feliz por muito.
Feliz por nada, nada mesmo? Talvez passe pela total despreocupação com essa busca. Essa tal de felicidade inferniza. “Faça isso, faça aquilo”. A troco? Quem garante que todos chegam lá pelo mesmo caminho?
Particularmente, gosto de quem tem compromisso com a alegria, que procura relativizar as chatices diárias e se concentrar no que importa pra valer, e assim alivia o seu cotidiano e não atormenta o dos outros. Mas não estando alegre, é possível ser feliz também. Não estando “realizado”, também. Estando triste, felicíssimo igual. Porque felicidade é calma. Consciência. É ter talento para aturar o inevitável, é tirar algum proveito do imprevisto, é ficar debochadamente assombrado consigo próprio: como é que eu me meti nessa, como é que foi acontecer comigo? Pois é, são os efeitos colaterais de se estar vivo.
Benditos os que conseguem se deixar em paz. Os que não se cobram por não terem cumprido suas resoluções, que não se culpam por terem falhado, não se torturam por terem sido contraditórios, não se punem por não terem sido perfeitos. Apenas fazem o melhor que podem.
Se é para ser mestre em alguma coisa, então que sejamos mestres em nos libertar da patrulha do pensamento. De querer se adequar à sociedade e ao mesmo tempo ser livre. Adequação e liberdade simultaneamente? É uma senhora ambição. Demanda a energia de uma usina. Para que se consumir tanto?
A vida não é um questionário de Proust. Você não precisa ter que responder ao mundo quais são suas qualidades, sua cor preferida, seu prato favorito, que bicho seria. Que mania de se autoconhecer. Chega de se autoconhecer. Você é o que é, um imperfeito bemintencionado e que muda de opinião sem a menor culpa.
Ser feliz por nada talvez seja isso.
MEDEIROS, Martha. Felicidade crônica. 15.ed. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 86-87.
Gabarito comentado
Tema central da questão: A questão aborda interpretação de texto com foco em figuras de linguagem (recursos expressivos), fundamentais na análise e compreensão da mensagem transmitida em textos literários. O candidato precisa identificar qual alternativa não emprega figura de linguagem.
Justificativa para a alternativa correta (D):
No trecho “gosto de quem tem compromisso com a alegria”, temos uma construção literal. O verbo “gostar” exprime uma preferência direta, sem empregar qualquer figura de linguagem.
Regra-chave: Figuras de linguagem decorrem da utilização conotativa das palavras, ultrapassando o significado restrito (denotativo). Aqui, o autor simplesmente manifesta seu apreço por pessoas alegres, sem uso de comparação, metáfora, hipérbole, personificação ou paradoxo.
Portanto, a alternativa D é correta por ser a única opção livre do uso de figuras de linguagem.
Análise das alternativas incorretas:
A) Metáfora – “Patrulha do pensamento” não é patrulha literal; simboliza os controles/verificações internos, segundo Bechara (Moderna Gramática), típico de metáfora (comparação implícita).
B) Hipérbole – “Senhora ambição” exagera a intensidade da ambição, reforçando o tamanho do desejo. A hipérbole é o exagero intencional, como define Cunha & Cintra.
C) Personificação – “As novidades envelhecem” atribui ao substantivo abstrato “novidades” característica humana (envelhecer), exemplo claro de personificação.
E) Paradoxo – “Estando triste, felicíssimo igual.” aproxima termos opostos e provoca reflexão sobre a coexistência de alegria e tristeza, característica do paradoxo.
Estratégias e atenção às pegadinhas: Em questões de figuras de linguagem, leia cuidadosamente o sentido que o autor atribui aos termos. Sempre se pergunte: o termo está sendo usado em seu sentido literal ou figurado? Palavras com valor adjetivo ou intensificador (como “senhora” em B, por exemplo) costumam ser pistas. Nunca confunda opinião, sentimento ou preferência (D) com figura de linguagem, pois são ideias literais!
Referências: Bechara (Moderna Gramática Portuguesa); Cunha & Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo); Fiorin (Figuras de Retórica).
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