No primeiro parágrafo, o autor recorre a uma construção
paradoxal em:
Leia o trecho inicial de Raízes do Brasil, do historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), para responder à questão.
A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas,
largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens
da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de
convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em
manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e
hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o
tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o
fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de
outra paisagem.
Assim, antes de perguntar até que ponto poderá alcançar bom êxito a tentativa, caberia averiguar até onde temos
podido representar aquelas formas de convívio, instituições e
ideias de que somos herdeiros.
É significativa, em primeiro lugar, a circunstância de termos recebido a herança através de uma nação ibérica. A Espanha e Portugal são, com a Rússia e os países balcânicos
(e em certo sentido também a Inglaterra), um dos territórios-
-ponte pelos quais a Europa se comunica com os outros mundos. Assim, eles constituem uma zona fronteiriça, de transição, menos carregada, em alguns casos, desse europeísmo que, não obstante, mantêm como um patrimônio necessário.
Foi a partir da época dos grandes descobrimentos marítimos que os dois países entraram mais decididamente no
coro europeu. Esse ingresso tardio deveria repercutir intensamente em seus destinos, determinando muitos aspectos
peculiares de sua história e de sua formação espiritual. Surgiu, assim, um tipo de sociedade que se desenvolveria, em
alguns sentidos, quase à margem das congêneres europeias,
e sem delas receber qualquer incitamento que já não trouxesse em germe.
Quais os fundamentos em que assentam de preferência
as formas de vida social nessa região indecisa entre a Europa e a África, que se estende dos Pireneus a Gibraltar? Como
explicar muitas daquelas formas, sem recorrer a indicações
mais ou menos vagas e que jamais nos conduziriam a uma
estrita objetividade?
Precisamente a comparação entre elas e as da Europa
de além-Pireneus faz ressaltar uma característica bem peculiar à gente da península Ibérica, uma característica que ela
está longe de partilhar, pelo menos na mesma intensidade,
com qualquer de seus vizinhos do continente. É que nenhum
desses vizinhos soube desenvolver a tal extremo essa cultura
da personalidade, que parece constituir o traço mais decisivo
na evolução da gente hispânica, desde tempos imemoriais.
Pode dizer-se, realmente, que pela importância particular que
atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de
cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo
e no espaço, devem os espanhóis e portugueses muito de
sua originalidade nacional. [...]
É dela que resulta largamente a singular tibieza das formas de organização, de todas as associações que impliquem
solidariedade e ordenação entre esses povos. Em terra onde
todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a
não ser por uma força exterior respeitável e temida.
(Raízes do Brasil, 2000.)
Leia o trecho inicial de Raízes do Brasil, do historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), para responder à questão.
A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas,
largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens
da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de
convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em
manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e
hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o
tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o
fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de
outra paisagem.
Assim, antes de perguntar até que ponto poderá alcançar bom êxito a tentativa, caberia averiguar até onde temos
podido representar aquelas formas de convívio, instituições e
ideias de que somos herdeiros.
É significativa, em primeiro lugar, a circunstância de termos recebido a herança através de uma nação ibérica. A Espanha e Portugal são, com a Rússia e os países balcânicos
(e em certo sentido também a Inglaterra), um dos territórios-
-ponte pelos quais a Europa se comunica com os outros mundos. Assim, eles constituem uma zona fronteiriça, de transição, menos carregada, em alguns casos, desse europeísmo que, não obstante, mantêm como um patrimônio necessário.
Foi a partir da época dos grandes descobrimentos marítimos que os dois países entraram mais decididamente no
coro europeu. Esse ingresso tardio deveria repercutir intensamente em seus destinos, determinando muitos aspectos
peculiares de sua história e de sua formação espiritual. Surgiu, assim, um tipo de sociedade que se desenvolveria, em
alguns sentidos, quase à margem das congêneres europeias,
e sem delas receber qualquer incitamento que já não trouxesse em germe.
Quais os fundamentos em que assentam de preferência
as formas de vida social nessa região indecisa entre a Europa e a África, que se estende dos Pireneus a Gibraltar? Como
explicar muitas daquelas formas, sem recorrer a indicações
mais ou menos vagas e que jamais nos conduziriam a uma
estrita objetividade?
Precisamente a comparação entre elas e as da Europa
de além-Pireneus faz ressaltar uma característica bem peculiar à gente da península Ibérica, uma característica que ela
está longe de partilhar, pelo menos na mesma intensidade,
com qualquer de seus vizinhos do continente. É que nenhum
desses vizinhos soube desenvolver a tal extremo essa cultura
da personalidade, que parece constituir o traço mais decisivo
na evolução da gente hispânica, desde tempos imemoriais.
Pode dizer-se, realmente, que pela importância particular que
atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de
cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo
e no espaço, devem os espanhóis e portugueses muito de
sua originalidade nacional. [...]
É dela que resulta largamente a singular tibieza das formas de organização, de todas as associações que impliquem
solidariedade e ordenação entre esses povos. Em terra onde
todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a
não ser por uma força exterior respeitável e temida.
(Raízes do Brasil, 2000.)