Em “O brilhante Ruy Castro erra pelo menos três vezes (imaginem os
outros!)”, o uso do adjetivo “brilhante” é:
Da arte de citarSÍRIO POSSENTI
No texto, chamado ‘Com o sentido que você quiser’, publicado na Folha de S. Paulo de 25/04/2012, Ruy Castro estranha o emprego de ‘dérbi’ para designar embates como Guarani X Ponte Preta e cita uma série de dicionários que não anotam a acepção relativa a confrontos futebolísticos.
Cita o Aurélio, que informa que dérbi é a “mais importante e tradicional carreira inglesa, disputada em Epsom pela primeira vez no século 18, e que veio a dar o nome ao primeiro clube de corrida de cavalos do Brasil, no RJ, depois incorporado ao Jóquei Clube”. Não há referências ao futebol, o que o deixou tranquilo. Para mostrar que aqueles jornalistas estão mesmo errados, consultou também o Webster’s Dictionary, cujas informações traduz: “1. Corrida de cavalos em Epsom, Inglaterra, patrocinada pelo 12º conde de Derby em 1780, daí o nome. Por extensão, corrida de cachorros (sic). 2. Chapéu-coco. 3. Um certo tipo de sapato com fivela para homens”. Ruy não lamenta os sentidos 2 e 3, nem explica suas razões. O final da coluna dele é irônico: “Ora, que besteira. Por que não fui logo ao Google ou à Wikipédia? Neles tem ‘dérbi’ à vontade, e com o sentido que você quiser” (anote-se a ocorrência de ‘tem’, embora a questão seja outra). O brilhante Ruy Castro erra pelo menos três vezes (imaginem os outros!): a) não se chateia com o fato de ‘dérbi’ signifi car chapéu-coco ou um tipo de sapato, mas acha estapafúrdio que designe uma partida de futebol; b) diz que se pode atribuir à palavra o sentido que se quiser; c) não consultou outros dicionários (ou não contou ao leitor o que eles dizem). Começo pelo final, que cobre as outras questões. Consultar outras fontes pode ser revelador. Vamos lá. O Houaiss informa que dérbi é um “jogo, partida ou competição esportiva de grande destaque (como o Derby de Epsom, na Inglaterra)”. Como se vê, ele não o restringe ao turfe; só menciona o evento ‘original’ entre parênteses. O Petit Larousse (traduzo) diz que é um “encontro esportivo entre equipes vizinhas” (como Ponte e Guarani, portanto). Segundo o Petit Robert, é um “encontro de futebol entre duas cidades vizinhas”. O McMillan anota: “um jogo entre dois times da mesma cidade” (nada de cavalos, como se vê) e o YOURDictionary repete a mesma informação (ou será o contrário?). Finalmente, o Diccionario de La Lengua Española (da Real Academia) informa que dérby é um “encontro, geralmente futebolístico, entre duas equipes cujos torcedores mantêm permanente rivalidade”. De novo, nada de cavalos. E prioriza claramente o futebol! Gostaria muito de conseguir entender outras coisas (que dérbi não significa só corridas de cavalos está mais do que claro; já entendi). Uma: por que será que dérbi significa chapéu-coco e um tipo de sapato com fivela para homens? Meu faro diz que eram peças usadas para ir aos dérbis. Pergunta: por que Ruy Castro teve a má sorte de só conhecer dicionários que, casualmente, não citam o sentido relativo a encontros futebolísticos? Outra pergunta: por que Ruy Castro estranha os sentidos analógicos (no caso, a extensão de uma disputa turfística para uma futebolística), que são uma das principais características das línguas humanas? Será que ele pensa, por exemplo, que uma pessoa doce vem coberta de açúcar? Finalmente, queria entender como Ruy Castro consegue não entender que, se todo mundo emprega ‘dérbi’ para falar de certos jogos de futebol e os dicionários que ele consultou não registram o fato, o problema deve ser dos dicionários.(Ciência Hoje, 24/04/2015. Disponível em http://cienciahoje.uol.com.br/ colunas/palavreado/da-arte-de-citar, acesso em 02/09/2015. Adaptado.)
Gabarito comentado
Tema central da questão: Interpretação de texto e figuras de linguagem – Ironia.
O ponto-chave desta questão está em identificar como o adjetivo “brilhante” é empregado no contexto e qual figura de linguagem está em jogo.
Justificativa da alternativa correta:
No trecho analisado, ao dizer “O brilhante Ruy Castro erra pelo menos três vezes (imaginem os outros!)”, o autor NÃO pretende elogiar o articulista, mas, pelo contrário, enfatizar seus deslizes. Utiliza-se, portanto, da ironia, que segundo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa) consiste em “empregar uma palavra ou expressão em sentido oposto ao literal, geralmente para efeito crítico ou jocoso”. Aqui, chamar Ruy Castro de “brilhante” realça, na verdade, suas falhas, e não as suas virtudes.
Alternativa correta: B) irônico.
Análise das alternativas incorretas:
A) literal: Errada. O termo não foi empregado para elogiar realmente, mas sim para ironizar o comportamento do personagem, opondo-se à interpretação literal.
C) pleonástico: Errada. Pleonasmo ocorre quando há redundância desnecessária entre palavras próximas (ex: “subir para cima”). “Brilhante” não repete ou reforça nenhum termo, apenas qualifica de maneira carregada de ironia.
D) incorreto: Errada. O uso está correto dentro da intenção do autor, pois ele recorre à ironia para criticar.
E) anafórico: Errada. Anafora é quando um termo retoma outro anterior. “Brilhante” não retoma nenhum termo do texto; define, de modo irônico, o sujeito.
Dica de interpretação: Sempre observe o contexto geral da frase. Termos elogiosos, em contextos críticos ou de oposição, frequentemente são empregados com ironia. Questões desse tipo são comuns em vestibulares!
Referências válidas: Bechara (2009) e Cunha & Cintra (2013) detalham essas figuras de linguagem. O Manual de Redação da Presidência da República alerta: a clareza do texto oficial deve evitar ambiguidades e ironias; já em textos opinativos e literários, o emprego é legítimo e expressivo.
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