O título do texto resulta de um trocadilho com a frase feita de origem popular “não ter papas na
língua”. Comparados título e frase feita, pode-se afirmar:
Sem aspas na língua
De início, o que me incomodava era o peso desproporcional que as aspas dão à palavra. Se
escrevo mouse pad, por exemplo, suscito em seu pensamento apenas o quadradinho discreto que vive
ao lado do teclado, objeto não mais notável na economia do cotidiano do que as dobradiças da
janela ou o porta-escova de dentes. Já "mouse pad" parece grafado em neon, brilha diante de seus
olhos como o luminoso de uma lanchonete americana. Desequilibra.
Tá legal, eu aceito o argumento: não se pode exigir do leitor que saiba outra língua além do
português. Se encasqueto em ornar meu texto com "dramblys" ou "haveloos" - termos em lituano e
holandês para elefante e mulambento, respectivamente -, as aspas surgem para acalmar quem me lê,
como se dissessem: "Queridão, os termos discriminados são coisa doutras terras e doutra gente, nada
que você devesse conhecer".
Pois é essa discriminação o que, agora sei, mais me incomoda. Vejo por trás das aspas uma
pontinha de xenofobia, como se para circular entre nós a palavra estrangeira precisasse andar com o
passaporte aberto, mostrando o carimbo na entrada e na saída.
Ora, por quê? Será que "blackberries" rolando livremente por nossa terra poderiam frutificar e,
como ervas daninhas, roubar os nutrientes da graviola, da mangaba e do cajá? "Samplers", sem as
barrinhas duplas de proteção, acabariam poluindo o português com "beats" exógenos, condenando-o
a uma versão "remix"? Caso recebêssemos "blowjobs" sem o supracitado preservativo gráfico, doenças
venéreas se espalhariam por nosso exposto vernáculo?
Bobagem, pessoal. Livremos as nossas frases desses arames farpados, desses cacos de vidro. A
língua é viva: quanto mais línguas tocar, mais sabores irá provar e experiências poderá acumular.
Antônio Prata, Folha de S. Paulo, 22/05/2013. Adaptado
Sem aspas na língua
De início, o que me incomodava era o peso desproporcional que as aspas dão à palavra. Se
escrevo mouse pad, por exemplo, suscito em seu pensamento apenas o quadradinho discreto que vive
ao lado do teclado, objeto não mais notável na economia do cotidiano do que as dobradiças da
janela ou o porta-escova de dentes. Já "mouse pad" parece grafado em neon, brilha diante de seus
olhos como o luminoso de uma lanchonete americana. Desequilibra.
Tá legal, eu aceito o argumento: não se pode exigir do leitor que saiba outra língua além do
português. Se encasqueto em ornar meu texto com "dramblys" ou "haveloos" - termos em lituano e
holandês para elefante e mulambento, respectivamente -, as aspas surgem para acalmar quem me lê,
como se dissessem: "Queridão, os termos discriminados são coisa doutras terras e doutra gente, nada
que você devesse conhecer".
Pois é essa discriminação o que, agora sei, mais me incomoda. Vejo por trás das aspas uma
pontinha de xenofobia, como se para circular entre nós a palavra estrangeira precisasse andar com o
passaporte aberto, mostrando o carimbo na entrada e na saída.
Ora, por quê? Será que "blackberries" rolando livremente por nossa terra poderiam frutificar e,
como ervas daninhas, roubar os nutrientes da graviola, da mangaba e do cajá? "Samplers", sem as
barrinhas duplas de proteção, acabariam poluindo o português com "beats" exógenos, condenando-o
a uma versão "remix"? Caso recebêssemos "blowjobs" sem o supracitado preservativo gráfico, doenças
venéreas se espalhariam por nosso exposto vernáculo?
Bobagem, pessoal. Livremos as nossas frases desses arames farpados, desses cacos de vidro. A
língua é viva: quanto mais línguas tocar, mais sabores irá provar e experiências poderá acumular.
Antônio Prata, Folha de S. Paulo, 22/05/2013. Adaptado
Gabarito comentado
Tema central: A questão avalia interpretação de texto, com foco em sentido conotativo e função metalinguística da linguagem, além da identificação de expressões idiomáticas na norma-padrão.
Análise do título e da expressão: O título “Sem aspas na língua” faz um jogo de palavras com a expressão popular “não ter papas na língua”, que significa falar sem reservas ou censura. Ambas têm valor metafórico (conotativo): não se referem literalmente a obstáculo nas línguas, mas à liberdade de falar. O autor discute o uso de aspas para destacar estrangeirismos, associando-as a uma forma de restrição, enquanto “não ter papas na língua” sugere a ausência de impedimentos para a fala franca.
Justificativa da Alternativa Correta (B): Correta. Ambos são metalinguísticos, ou seja, falam sobre a própria linguagem (tema estudado em Bechara, Cunha & Cintra). “Sem aspas na língua” discute o uso de um sinal gráfico como interferência na expressão e a expressão idiomática aborda a liberdade ao falar. Isso se relaciona à liberdade de expressão em níveis figurados.
Análise das alternativas incorretas:
A) Incorreta. Ambas possuem sentido conotativo, não denotativo. A expressão “não ter papas na língua” é metafórica; o título também.
C) Incorreta. Nenhuma indica submissão; ambas tratam de autonomia ou questionamento quanto a restrições na fala.
D) Incorreta. Não há qualquer relação de maior dificuldade em escrever do que falar, mas sim discussão sobre restrições à liberdade de uso da língua.
E) Incorreta. O termo “literalmente falando” não seria adequado, pois se trata de metáfora, ou seja, não podem ser entendidas ao pé da letra.
Interpretação estratégica: Fique atento aos enunciados que exigem reconhecimento de conotação, metáfora ou função da linguagem. Identifique palavras de sentido figurado e possíveis intenções metalinguísticas. Evite cair em pegadinhas que misturam interpretações literais e metafóricas.
Referências: BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa; CUNHA & CINTRA, Nova Gramática do Português Contemporâneo.
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