Texto 2 / Parte 2
A importância do ato de ler2
Paulo Freire
Continuando neste esforço de “re-ler” momentos fundamentais de experiências de minha infância, de
minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se
veio em mim constituindo através de sua prática, retomo o tempo em que, como aluno do chamado
curso ginasial, me experimentei na percepção crítica dos textos que lia em classe, com a colaboração,
até hoje recordada, do meu então professor de língua portuguesa. Não eram, porém, aqueles
momentos puros exercícios de que resultasse um simples dar-nos conta de uma página escrita diante
de nós que devesse ser cadenciada, mecânica e enfadonhamente “soletrada” e realmente lida. Não
eram aqueles momentos “lições de leitura”, no sentido tradicional desta expressão. Eram momentos em
que os textos se ofereciam à nossa inquieta procura, incluindo a do então jovem professor José Pessoa.
Algum tempo depois, como professor também de português, nos meus vinte anos, vivi intensamente a
importância de ler e de escrever, no fundo indicotomizáveis, com os alunos das primeiras séries do
então chamado curso ginasial. A regência verbal, a sintaxe de concordância, o problema da crase, o
sinclitismo pronominal, nada disso era reduzido por mim a tabletes de conhecimentos que devessem
ser engolidos pelos estudantes. Tudo isso, pelo contrário, era proposto à curiosidade dos alunos de
maneira dinâmica e viva, no corpo mesmo de textos, ora de autores que estudávamos, ora deles
próprios, como objetos a serem desvelados e não como algo parado, cujo perfil eu descrevesse. Os
alunos não tinham que memorizar mecanicamente a descrição do objeto, mas apreender a sua
significação profunda. Só apreendendo-a seriam capazes de saber, por isso, de memorizá-la, de fixá-la.
A memorização mecânica da descrição do elo não se constitui em conhecimento do objeto. Por isso, é
que a leitura de um texto, tomado como pura descrição de um objeto é feita no sentido de memorizá-la,
nem é real leitura, nem dela portanto resulta o conhecimento do objeto de que o texto fala.
Creio que muito de nossa insistência, enquanto professoras e professores, em que os estudantes
“leiam”, num semestre, um sem-número de capítulos de livros, reside na compreensão errônea que às
vezes temos do ato de ler. Em minha andarilhagem pelo mundo, não foram poucas as vezes em que
jovens estudantes me falaram de sua luta às voltas com extensas bibliografias a serem muito mais
“devoradas" do que realmente lidas ou estudadas. [...]
A insistência na quantidade de leituras sem o devido adentramento nos textos a serem compreendidos,
e não mecanicamente memorizados, revela uma visão mágica da palavra escrita. Visão que urge ser
superada. A mesma, ainda que encarnada desde outro ângulo, que se encontra, por exemplo, em quem
escreve, quando identifica a possível qualidade de seu trabalho, ou não, com a quantidade de páginas
escritas. No entanto, um dos documentos filosóficos mais importantes de que dispomos, As teses sobre
Feuerbach, de Marx, tem apenas duas páginas e meia...
Parece importante, contudo, para evitar uma compreensão errônea do que estou afirmando, sublinhar
que a minha crítica à magicização da palavra não significa, de maneira alguma, uma posição pouco
responsável de minha parte com relação à necessidade que temos, educadores e educandos, de ler,
sempre e seriamente, os clássicos neste ou naquele campo do saber, de nos adentrarmos nos textos,
de criar uma disciplina intelectual, sem a qual inviabilizamos a nossa prática enquanto professores e
estudantes.