Questão ff5452c4-f0
Prova:Esamc 2019
Disciplina:Português
Assunto:Interpretação de Textos, Noções Gerais de Compreensão e Interpretação de Texto

“Os alarmes que não soaram reproduzem o silêncio da humanidade diante das repetidas manifestações da violência da técnica.”

O trecho acima, em meio a um poético jogo de palavras dos universos do som e do silêncio, faz uma dura crítica, segundo a qual a humanidade:

A técnica na sofisticada marcha da humanidade em direção ao precipício 
Márcio Seligmann-Silva

    [...] Aparentemente, a marcha incontornável da humanidade em direção ao precipício (em regimes capitalistas puros, nos de capitalismo de Estado e nos que tentaram, de modo infeliz, a ditadura dos partidos comunistas) não pode ser alterada sem um levante de uma população que, lamentavelmente, parece cada vez mais fascinada pelo mundo da técnica dos gadgets.

    Como no mito dos lemingues que se suicidam no mar, nossa espécie supostamente racional faria algo semelhante por meios mais “sofisticados”. [...]

    A chamada “força do mercado”, esse “quarto poder” que efetivamente manda e desmanda no mundo, está calcada nesse modelo de técnica predadora sem o qual as indústrias (e suas ações no mercado) não existiriam. O capitalismo se alimenta da Terra, mas desconsidera que esta mesma Terra é finita e está sendo exaurida.

    O filósofo Hans Jonas dedicou os últimos anos de sua longa vida (1903- 1993) à construção de uma nova ética da responsabilidade à altura desses desafios contemporâneos. Ele afirmava que “não temos o direito de hipotecar a existência das gerações futuras por conta de nosso comodismo” e propôs uma virada.

    Ao invés de construir um modelo calcado no presente, com o objetivo do viver bem e da felicidade conectados ao aqui e agora, estabeleceu o desafio de construir uma ética do futuro: da destruição da casa-Terra, ele deduz o imperativo de salvar essa morada para garantir a possibilidade de vida futura.

    Em vez de apostar no modelo liberal do progresso infinito a qualquer custo ou de acreditar na promessa revolucionária que traria de um golpe o “paraíso sobre a Terra?” ele aposta em um “summum bonum” moderado, modesto, o único possível para a nossa sobrevivência. Fala de um “princípio de moderação”, reconhecendo que a conta deveria ser paga pelos que mais possuem.

    Hoje, podemos dizer que esse futuro que ele desenhava, ou seja, esse tempo já sem muito tempo de sobrevida, tornou-se o nosso tempo. Sua “heurística do medo” — a saber, uma pedagogia da humanidade que se transformaria a partir do confronto com a visão medonha de seu fim muito próximo — soa ainda poderosa, mas um tanto inocente, mesmo reconhecendo que suas ideias influenciaram protocolos como o Acordo de Paris, de 2015.

    Observando a sequência de crimes socioambientais, parece que essa heurística não está rendendo frutos. Não aprendemos com as catástrofes, e isso nos levará, caso não alteremos nosso curso, à catástrofe final. Ou seja, a emoção do medo do Armagedom está sendo vencida pela razão instrumental e sua promessa (distópica) de transformar a natureza em mercadoria.

     [...] Um lamentável e terrível exemplo da situação em que nos encontramos em termos dessa submissão a um determinado modelo liberal associado a uma técnica espoliadora e destrutiva é justamente o que acaba de ocorrer com o rompimento da barragem da empresa Vale em Brumadinho (MG).

    Apenas a arrogância fáustica, a hybris que cega, o sentimento de onipotência podem justificar que essa barragem (como tantas outras) tenha sido construída logo acima de uma área urbana e das instalações dos funcionários da empresa. Novamente a situação de risco associada a esse tipo de tecnologia ficou exposta. Os alarmes que não soaram reproduzem o silêncio da humanidade diante das repetidas manifestações da violência da técnica.
    O cerne do capitalismo é o lucro e isso explica, nesse caso e em outros, tudo de modo simples e direto. O crime de Brumadinho deve ultrapassar 300 vítimas fatais diretas, fora a destruição de toda uma região habitada também por pescadores, ribeirinhos e indígenas pataxó que dependiam diretamente do rio Paraopeba para a sua sobrevivência. Se pensarmos nos inúmeros atingidos, apenas no Brasil, por barragens (de mineradoras e de hidroelétricas), fica claro que não se trata apenas de uma questão de “barragem a montante”.

(Adaptado de “A técnica na sofisticada marcha da humanidade em direção ao precipício”, publicado na FOLHA DE S.PAULO, em 17/02/19, pelo Prof. Dr Márcio Seligmann-Silva, titular de teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.) 

A
não clama do capitalismo a reparação histórica de povos pobres.
B
não reivindica justiça quando falhas técnicas são tratadas como acidentes.
C
se esconde de si mesma e de seus medos em meio ao consumismo desenfreado.
D
caminha para seu próprio fim, por não dominar a técnica como pensava dominar.
E
vive um momento de atordoamento, que afasta cada ser humano da empatia.

Gabarito comentado

G
Giovana Siqueira Monitor do Qconcursos

Tema central: A questão avalia interpretação de texto, especificamente a compreensão de críticas implícitas e explícitas em textos argumentativos.

Justificativa para a alternativa correta (B):

No trecho citado – “Os alarmes que não soaram reproduzem o silêncio da humanidade diante das repetidas manifestações da violência da técnica” –, o autor faz uma analogia entre o silêncio dos alarmes (ausentes diante da tragédia) e a inércia da sociedade frente aos desastres advindos do avanço tecnológico. Em termos de interpretação, aqui há uma crítica implícita à passividade: a humanidade “silencia” diante de situações que exigiriam posicionamento, denúncia ou reivindicação de justiça.

Segundo Koch e Elias, interpretar textos argumentativos exige captar o implícito: o que o autor sugere sem dizer literalmente. Assim, a alternativa B (“não reivindica justiça quando falhas técnicas são tratadas como acidentes”) traduz exatamente o sentido desse silêncio representado pelos alarmes, mostrando a crítica ao conformismo social diante de tragédias técnicas.

Análise das alternativas incorretas:

A) Não clama do capitalismo a reparação histórica de povos pobres: Essa análise extrapola o trecho, pois o foco do autor é sobre a passividade diante de eventos técnicos trágicos, não uma cobrança histórica ampla.

C) Se esconde de si mesma e de seus medos em meio ao consumismo desenfreado: Embora o texto cite o fascínio pelos gadgets, o trecho-base remete à postura diante da “violência da técnica”.

D) Caminha para seu próprio fim, por não dominar a técnica como pensava dominar: Traz um sentido presente no texto geral, mas não corresponde à crítica do trecho destacado, que trata da omissão diante dos acidentes.

E) Vive um momento de atordoamento, que afasta cada ser humano da empatia: Generaliza a reação humana e não foca na questão das falhas técnicas e sua (não) cobrança.

Dicas de interpretação:

Busque sempre o núcleo da crítica expressa ou sugerida no trecho-resumo da questão. Atenção a metáforas e analogias (como “alarmas que não soaram”), pois geralmente carregam sentidos implícitos. Evite selecionar alternativas que tragam temas muito gerais ou extrapolem o trecho analisado.

Resumo: A alternativa B está correta porque evidencia a crítica à omissão da sociedade diante de falhas técnicas, algo explicitado pelo “silêncio” dos alarmes e da humanidade.

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