Releia o trecho:
“O filósofo Hans Jonas [...] afirmava que ‘não temos o direito de hipotecar a existência das gerações futuras por conta de nosso comodismo’ e
propôs uma virada.”
Transpondo do texto para a realidade mundial hoje, um exemplo prático da “virada” a que o dito filósofo se refere poderia ser, hipoteticamente:
A técnica na sofisticada marcha da humanidade em direção ao precipício Márcio Seligmann-Silva
[...] Aparentemente, a marcha incontornável da humanidade em direção ao precipício (em regimes capitalistas puros, nos de capitalismo de Estado e nos que tentaram, de modo infeliz, a ditadura dos partidos comunistas) não pode ser alterada sem um levante de uma população que, lamentavelmente, parece cada vez mais fascinada pelo mundo da técnica dos gadgets.
Como no mito dos lemingues que se suicidam no mar, nossa espécie supostamente racional faria algo semelhante por meios mais “sofisticados”. [...]
A chamada “força do mercado”, esse “quarto poder” que efetivamente manda e desmanda no mundo, está calcada nesse modelo de técnica predadora sem o qual as indústrias (e suas ações no mercado) não existiriam. O capitalismo se alimenta da Terra, mas desconsidera que esta mesma Terra é finita e está sendo exaurida.
O filósofo Hans Jonas dedicou os últimos anos de sua longa vida (1903- 1993) à construção de uma nova ética da responsabilidade à altura desses desafios contemporâneos. Ele afirmava que “não temos o direito de hipotecar a existência das gerações futuras por conta de nosso comodismo” e propôs uma virada.
Ao invés de construir um modelo calcado no presente, com o objetivo do viver bem e da felicidade conectados ao aqui e agora, estabeleceu o desafio de construir uma ética do futuro: da destruição da casa-Terra, ele deduz o imperativo de salvar essa morada para garantir a possibilidade de vida futura.
Em vez de apostar no modelo liberal do progresso infinito a qualquer custo ou de acreditar na promessa revolucionária que traria de um golpe o “paraíso sobre a Terra?” ele aposta em um “summum bonum” moderado, modesto, o único possível para a nossa sobrevivência. Fala de um “princípio de moderação”, reconhecendo que a conta deveria ser paga pelos que mais possuem.
Hoje, podemos dizer que esse futuro que ele desenhava, ou seja, esse tempo já sem muito tempo de sobrevida, tornou-se o nosso tempo. Sua “heurística do medo” — a saber, uma pedagogia da humanidade que se transformaria a partir do confronto com a visão medonha de seu fim muito próximo — soa ainda poderosa, mas um tanto inocente, mesmo reconhecendo que suas ideias influenciaram protocolos como o Acordo de Paris, de 2015.
Observando a sequência de crimes socioambientais, parece que essa heurística não está rendendo frutos. Não aprendemos com as catástrofes, e isso nos levará, caso não alteremos nosso curso, à catástrofe final. Ou seja, a emoção do medo do Armagedom está sendo vencida pela razão instrumental e sua promessa (distópica) de transformar a natureza em mercadoria.
[...] Um lamentável e terrível exemplo da situação em que nos encontramos em termos dessa submissão a um determinado modelo liberal associado a uma técnica espoliadora e destrutiva é justamente o que acaba de ocorrer com o rompimento da barragem da empresa Vale em Brumadinho (MG).
Apenas a arrogância fáustica, a hybris que cega, o sentimento de onipotência podem justificar que essa barragem (como tantas outras) tenha sido construída logo acima de uma área urbana e das instalações dos funcionários da empresa. Novamente a situação de risco associada a esse tipo de tecnologia ficou exposta. Os alarmes que não soaram reproduzem o silêncio da humanidade diante das repetidas manifestações da violência da técnica. O cerne do capitalismo é o lucro e isso explica, nesse caso e em outros, tudo de modo simples e direto. O crime de Brumadinho deve ultrapassar 300 vítimas fatais diretas, fora a destruição de toda uma região habitada também por pescadores, ribeirinhos e indígenas pataxó que dependiam diretamente do rio Paraopeba para a sua sobrevivência. Se pensarmos nos inúmeros atingidos, apenas no Brasil, por barragens (de mineradoras e de hidroelétricas), fica claro que não se trata apenas de uma questão de “barragem a montante”.
(Adaptado de “A técnica na sofisticada marcha da humanidade em direção ao precipício”, publicado na FOLHA DE S.PAULO, em 17/02/19, pelo Prof. Dr Márcio Seligmann-Silva, titular de teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.)
Gabarito comentado
Tema central: Interpretação de Texto – compreensão de citação, ética da responsabilidade e análise crítica de alternativas.
O núcleo da questão exige interpretar corretamente o significado da citação de Hans Jonas: “não temos o direito de hipotecar a existência das gerações futuras por conta de nosso comodismo”. Aqui, o filósofo propõe uma mudança ética que visa proteger o meio ambiente e garantir sobrevivência sustentável para as próximas gerações.
Pela estratégia de interpretação – defendida por Evanildo Bechara (“Moderna Gramática Portuguesa”) – recomenda-se avaliar o foco semântico da citação para identificar a alternativa que concretize a ideia de responsabilidade e preservação do futuro.
Alternativa correta:
A) Reduzir ao máximo o uso de embalagens plásticas ou de outros materiais não assimiláveis pela natureza.
Justificativa: Essa alternativa propõe uma atitude que objetiva diminuir o impacto ambiental, demonstrando a preocupação ética com o futuro e rompendo com o “comodismo” do presente. O ato de reduzir o uso de materiais não biodegradáveis representa, em termos práticos, “a virada” defendida por Jonas: agir hoje para não comprometer o amanhã.
Análise das alternativas incorretas:
- B: Priorizar IA não garante, por si, preservação ambiental. Pode até aumentar impactos se não for usada criticamente.
- C: Foca em controle populacional e restringe o debate a países pobres, não abordando responsabilidade ambiental universal e podendo envolver vieses éticos condenáveis.
- D: Sanções e boicotes são ações punitivas, não associadas à transformação ética coletiva para preservar o meio ambiente.
- E: Ajuda humanitária não necessariamente promove sustentabilidade ou ética pró-futuro; a relevância ambiental não é o foco.
Dica estratégica: Em questões assim, busque o alinhamento direto da alternativa com o conceito-chave do texto: aqui, agir para reduzir danos e proteger o futuro, e não apenas solucionar problemas pontuais ou agir apenas sob o viés econômico/político.
Resumo: Uma leitura atenta da citação e compreensão do conceito de ética da responsabilidade (“não hipotecar o futuro”) são essenciais para marcar a alternativa correta. Siga sempre o sentido global do texto e desconfie de respostas que fogem do campo temático central.
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