Segundo o texto, assinale a alternativa INCORRETA:
DESCOLADOS E BACANAS ADOTAM VIRA-LATAS
E PEDEM HÓSTIA 'GLUTEN FREE'
A tipologia humana contemporânea chama a atenção pelo ridículo. Descolados e bacanas são
pessoas que têm hábitos, afetos e disposições de alma mais avançados do que os "colados" e os
"canas". Estes são gente que não consegue acompanhar os progressos sociais e se perdem diante das novas
formas de economia, de sociabilidade e de direitos afetivos. Vejamos alguns exemplos dessa
tipologia dos descolados e bacanas. Se você não se enquadrar, não chore. Ser um "colado" ou "cana"
um dia poderá ascender à condição vintage, semelhante ao vinil ou ao filtro de barro.
A busca de uma alimentação saudável é um traço de descolados e bacanas. Um modo rápido e
preciso de identificá-los é usar a palavra "McDonald's" perto deles. Se a pessoa começar a gritar de
horror ou demonstrar desprezo, você está diante de um descolado e bacana. Se você não entender o
horror e o desprezo dela pelo McDonald's, você é um "colado" e um “cana”. Essa busca pela alimentação segura bateu na porta de Jesus, coitado. A demanda dos católicos
descolados e bacanas é que o corpo de Cristo venha sem glúten. Uma hóstia "gluten free". O papa,
seguramente uma pessoa desocupada, teve que se preocupar com o corpo de Cristo sem glúten. A
commoditização da religião, ou seja, a transformação da religião em produto, um dia chegaria a isso:
que Jesus emagreça seus fiéis. Um segundo tipo de descolado e bacana é aquele pai que fica lambendo o filho pra todo mundo
achar que ele é um "novo homem". Esse "novo homem" é, na verdade, um mito pra cobrir a
desarticulação crescente das relações entre homem e mulher. Homens cuidam de filhos há décadas,
mas agora pai que cuida de filho virou homem descolado e bacana, com direito à licença-paternidade
de 40 dias, dada por empresas descoladas e bacanas.
Além de tornar o emprego ainda mais caro (coisa que a lei trabalhista faz, inviabilizando o
emprego no país), a sorte dessas empresas é que as pessoas cada vez mais se separam antes de ter
filhos. As que não se separam, por sua vez, ou têm um filho só ou um cachorro. Logo, fica barato
posar de empresa descolada e bacana. Queria ver se a moçada fosse corajosa como os antigos e
tivesse cinco filhos por casal. Com o crescimento da cultura pet, logo empresas descoladas e bacanas
darão licença de uma semana quando o cachorro do casal ficar doente. E esse "direito" será uma
exigência do capitalismo consciente. Aliás, descolados e bacanas adotam cachorros vira-latas para
comprovar seu engajamento contra a desigualdade social animal. Um terceiro tipo de gente descolada e bacana é o praticante de formas solidárias de economia.
Este talvez seja o tipo mais descolado e bacana dos descritos até aqui nessa tipologia de bolso que
ofereço a você, a fim de que aprenda a se mover neste mundo contemporâneo tão avançado em que
vivemos. Uma nova "proposta" (expressões como "proposta" e "projeto" são essenciais se você quer ser
uma pessoa descolada e bacana) é oferecer sua casa "de graça" para pessoas morarem com você.
Calma! Se o leitor for alguém minimamente inteligente, desconfiará dessa proposta. Algumas dessas
propostas ainda vêm temperadas com um discurso de "empoderamento" das mulheres que
colaborariam umas com as outras. Explico.
Imagine que uma mãe single ofereça um quarto na casa dela para outra mulher em troca de ela
cuidar do maravilhoso e criativo filho pequeno dessa mãe single. Entendeu? Sim, trabalho escravo empacotado pra presente.
Gourmetizado dentro de um discurso de "solidariedade feminina" e economia colaborativa. Na
prática, você trabalharia em troca de casa e comida. Essa proposta é ainda mais ridícula do que
aquela em que você, jovem, recebe a "graça" de trabalhar de graça pra um marca famosa que combate
a fome na África em troca de experiência e para enriquecer seu "book". Na China eles são mais
solidários do que isso, você ganharia pelo menos um dólar.
Sim, o mundo contemporâneo é ridículo de doer. Com suas modinhas e terminologias chiques.
Coitada da esquerda que abraça essas pautas criativas. Saudades do Lênin?
(Por Luiz Felipe Pondé. Folha de S. Paulo, 31 de Julho de 2017).
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/07/1905751-descolados-ebacanas-adotam-vira-latas-e-pedem-hostia-gluten-free.shtml
Gabarito comentado
Comentário da questão – Interpretação de texto
Tema central: Esta questão aborda interpretação de texto, exigindo do candidato a habilidade de identificar a ideia principal, informações explícitas e implícitas e a intenção do autor.
Estratégia para resolver: Ao analisar as alternativas, o aluno deve buscar evidências no texto original, atentando-se a julgamentos de valor, ironia, críticas implícitas e vocabulário objetivo/subjetivo empregado pelo autor, como indicado por Celso Cunha e Lindley Cintra em suas obras sobre leitura interpretativa. Identifique também palavras-chave e relações de oposição ou comparação.
Justificativa da alternativa INCORRETA (C):
A alternativa C está incorreta porque deturpa o sentido dado pelo autor. O texto ironiza práticas de economia colaborativa apresentadas como solidárias, apontando que são, na verdade, formas de exploração, não uma "luta contra o trabalho escravo". O autor denuncia, com sarcasmo, que algumas propostas legitimam o “trabalho de graça” ou “em troca de casa e comida”, gourmetizando o trabalho precário sob discurso “solidário” – o oposto da luta anticontrapagamento ou antiexploração. Por isso, segundo a coerência textual (vide Bechara, Moderna Gramática Portuguesa), a opção contradiz o posicionamento do autor.
Análise das alternativas corretas:
A) Correta. O autor prevê, de forma crítica, novos “direitos” para casais com pets, ironizando possíveis consequências do avanço da cultura pet.
B) Correta. Há menção explícita de que “as propostas [...] são muitas vezes ridículas”, conforme várias passagens.
D) Correta. O texto considera mais absurda a situação do trabalho em troca de hospedagem do que o trabalho voluntário para marcas famosas.
E) Correta. O autor afirma que “o mundo contemporâneo é ridículo de doer” devido a modismos e terminologias criativas.
Dica: Cuidado com alternativas que atribuem ao texto intenções ou argumentos não presentes ou contrários ao que o autor expressa – isso é uma pegadinha comum em provas de vestibular. Leia sempre o contexto imediato das citações!
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