Questão edcd85e5-af
Prova:UNIOESTE 2017
Disciplina:Português
Assunto:Interpretação de Textos, Noções Gerais de Compreensão e Interpretação de Texto

Para o autor, um dos motivos para compreender a sociedade como ridícula está no fato de ela

DESCOLADOS E BACANAS ADOTAM VIRA-LATAS
E PEDEM HÓSTIA 'GLUTEN FREE'

        A tipologia humana contemporânea chama a atenção pelo ridículo. Descolados e bacanas são pessoas que têm hábitos, afetos e disposições de alma mais avançados do que os "colados" e os "canas".
       Estes são gente que não consegue acompanhar os progressos sociais e se perdem diante das novas formas de economia, de sociabilidade e de direitos afetivos. Vejamos alguns exemplos dessa tipologia dos descolados e bacanas. Se você não se enquadrar, não chore. Ser um "colado" ou "cana" um dia poderá ascender à condição vintage, semelhante ao vinil ou ao filtro de barro.
         A busca de uma alimentação saudável é um traço de descolados e bacanas. Um modo rápido e preciso de identificá-los é usar a palavra "McDonald's" perto deles. Se a pessoa começar a gritar de horror ou demonstrar desprezo, você está diante de um descolado e bacana. Se você não entender o horror e o desprezo dela pelo McDonald's, você é um "colado" e um “cana”.
       Essa busca pela alimentação segura bateu na porta de Jesus, coitado. A demanda dos católicos descolados e bacanas é que o corpo de Cristo venha sem glúten. Uma hóstia "gluten free". O papa, seguramente uma pessoa desocupada, teve que se preocupar com o corpo de Cristo sem glúten. A commoditização da religião, ou seja, a transformação da religião em produto, um dia chegaria a isso: que Jesus emagreça seus fiéis.
         Um segundo tipo de descolado e bacana é aquele pai que fica lambendo o filho pra todo mundo achar que ele é um "novo homem". Esse "novo homem" é, na verdade, um mito pra cobrir a desarticulação crescente das relações entre homem e mulher. Homens cuidam de filhos há décadas, mas agora pai que cuida de filho virou homem descolado e bacana, com direito à licença-paternidade de 40 dias, dada por empresas descoladas e bacanas.
        Além de tornar o emprego ainda mais caro (coisa que a lei trabalhista faz, inviabilizando o emprego no país), a sorte dessas empresas é que as pessoas cada vez mais se separam antes de ter filhos. As que não se separam, por sua vez, ou têm um filho só ou um cachorro. Logo, fica barato posar de empresa descolada e bacana. Queria ver se a moçada fosse corajosa como os antigos e tivesse cinco filhos por casal. Com o crescimento da cultura pet, logo empresas descoladas e bacanas darão licença de uma semana quando o cachorro do casal ficar doente. E esse "direito" será uma exigência do capitalismo consciente. Aliás, descolados e bacanas adotam cachorros vira-latas para comprovar seu engajamento contra a desigualdade social animal.
       Um terceiro tipo de gente descolada e bacana é o praticante de formas solidárias de economia. Este talvez seja o tipo mais descolado e bacana dos descritos até aqui nessa tipologia de bolso que ofereço a você, a fim de que aprenda a se mover neste mundo contemporâneo tão avançado em que vivemos.
        Uma nova "proposta" (expressões como "proposta" e "projeto" são essenciais se você quer ser uma pessoa descolada e bacana) é oferecer sua casa "de graça" para pessoas morarem com você. Calma! Se o leitor for alguém minimamente inteligente, desconfiará dessa proposta. Algumas dessas propostas ainda vêm temperadas com um discurso de "empoderamento" das mulheres que colaborariam umas com as outras. Explico.
       Imagine que uma mãe single ofereça um quarto na casa dela para outra mulher em troca de ela cuidar do maravilhoso e criativo filho pequeno dessa mãe single. Entendeu? Sim, trabalho escravo empacotado pra presente.
        Gourmetizado dentro de um discurso de "solidariedade feminina" e economia colaborativa. Na prática, você trabalharia em troca de casa e comida. Essa proposta é ainda mais ridícula do que aquela em que você, jovem, recebe a "graça" de trabalhar de graça pra um marca famosa que combate a fome na África em troca de experiência e para enriquecer seu "book". Na China eles são mais solidários do que isso, você ganharia pelo menos um dólar.
       Sim, o mundo contemporâneo é ridículo de doer. Com suas modinhas e terminologias chiques. Coitada da esquerda que abraça essas pautas criativas. Saudades do Lênin?


(Por Luiz Felipe Pondé. Folha de S. Paulo, 31 de Julho de 2017).
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/07/1905751-descolados-ebacanas-adotam-vira-latas-e-pedem-hostia-gluten-free.shtml

A
transformar causas banais em assuntos importantes.
B
hostilizar a rede de comidas do McDonald’s.
C
dar mais valor aos animais do que aos seres humanos.
D
não respeitar a igreja católica.
E
ser solidária.

Gabarito comentado

M
Marcela PascalMentora Qconcursos

Tema central: Interpretação de texto. A questão avalia sua capacidade de identificar a ideia principal do texto e captar a crítica do autor quanto ao comportamento social contemporâneo.

Comentário da Alternativa Correta (A):
A) transformar causas banais em assuntos importantes.

Pela interpretação textual — conforme orientam Celso Cunha & Lindley Cintra — é preciso identificar a ideia principal defendida pelo autor, observando não apenas o que está explícito, mas também o tom irônico e crítico do texto.

No texto, Pondé expõe, de modo irônico, comportamentos atuais tratados como grandes causas: hóstia "gluten free", adoção de vira-lata como engajamento social, “empoderamento” gourmetizado. Essa crítica aponta para a banalização de temas triviais tratados como pautas essenciais. A alternativa A sintetiza perfeitamente essa crítica, mostrando que, para o autor, o ridículo se instaura quando causas banais ganham status de grande relevância.

Por que as outras alternativas estão incorretas?

B) hostilizar a rede de comidas do McDonald's.
O autor menciona o McDonald’s como exemplo do comportamento “descolado”, mas não faz disso o centro de sua crítica à sociedade; não é a hostilização da rede o motivo do “ridículo”.

C) dar mais valor aos animais do que aos seres humanos.
A crítica à “adoção de vira-latas” aparece como demonstração de engajamento superficial. Ele não afirma que há uma inversão de valores absoluta, mas ironiza a teatralidade das ações.

D) não respeitar a igreja católica.
A menção ao “corpo de Cristo sem glúten” é um recurso para mostrar o excesso de exigências cotidianas transformadas em grandes causas; não há crítica direta ao desrespeito religioso.

E) ser solidária.
Solidariedade verdadeira não é o alvo do texto, mas sim a superficialidade de propostas travestidas de solidariedade.

Estratégias importantes: Fique atento a pistas semânticas no texto (como sarcasmos, exemplos hiperbólicos e expressões típicas de ironia), que ajudam a identificar a tese principal — segundo Pasquale Cipro Neto, toda leitura atenta é guiada pela busca do eixo temático dominante no texto.

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