Na cena apresentada, que explora o desconforto gerado pela
difícil interlocução com o indígena, o narrador
Leusipo perguntou o que eu tinha ido fazer na aldeia. Preferi
achar que o tom era amistoso e, no meu paternalismo ingênuo,
comecei a lhe explicar o que era um romance. Eu tentava
convencê-lo de que não havia motivo para preocupação. Tudo
o que eu queria saber já era conhecido. E ele me perguntava:
"Então, por que você quer saber, se já sabe?" Tentei lhe explicar
que pretendia escrever um livro e mais uma vez o que era um
romance, o que era um livro de ficção (e mostrava o que tinha
nas mãos), que seria tudo historinha, sem nenhuma
consequência na realidade. Ele seguia incrédulo. Fazia-se de
desentendido, mas na verdade só queria me intimidar. As
minhas explicações sobre o romance eram inúteis. Eu tentava
dizer que, para os brancos que não acreditam em deuses, a
ficção servia de mitologia, era o equivalente dos mitos dos
índios, e antes mesmo de terminar a frase, já não sabia se o
idiota era ele ou eu. Ele não dizia nada a não ser: "O que você
quer com o passado?". Repetia. E, diante da sua insistência
bovina, tive de me render à evidência de que eu não sabia
responder à sua pergunta.
Bernardo Carvalho, Nove noites. Adaptado.
Leusipo perguntou o que eu tinha ido fazer na aldeia. Preferi achar que o tom era amistoso e, no meu paternalismo ingênuo, comecei a lhe explicar o que era um romance. Eu tentava convencê-lo de que não havia motivo para preocupação. Tudo o que eu queria saber já era conhecido. E ele me perguntava: "Então, por que você quer saber, se já sabe?" Tentei lhe explicar que pretendia escrever um livro e mais uma vez o que era um romance, o que era um livro de ficção (e mostrava o que tinha nas mãos), que seria tudo historinha, sem nenhuma consequência na realidade. Ele seguia incrédulo. Fazia-se de desentendido, mas na verdade só queria me intimidar. As minhas explicações sobre o romance eram inúteis. Eu tentava dizer que, para os brancos que não acreditam em deuses, a ficção servia de mitologia, era o equivalente dos mitos dos índios, e antes mesmo de terminar a frase, já não sabia se o idiota era ele ou eu. Ele não dizia nada a não ser: "O que você quer com o passado?". Repetia. E, diante da sua insistência bovina, tive de me render à evidência de que eu não sabia responder à sua pergunta.
Bernardo Carvalho, Nove noites. Adaptado.