Ao aproximar-se, Pedro Archanjo notou que Nilo Argolo
punha os braços atrás das costas para impedir qualquer
tentativa de aperto de mão. Um calor subiu-lhe ao rosto.
Com o desplante de quem examinasse bicho ou coisa,
atentamente o professor estudou a fisionomia e o porte do
funcionário; no rosto infenso refletiu-se indisfarçável surpresa
ao constatar o garbo e a limpeza nos trajes do mulato, o
perfeito decoro. De certos mestiços, o catedrático pensava e,
em determinados casos, até dizia: Este merecia ser branco,
o que o desgraça é o sangue africano.
— Foi você quem escreveu uma brochura intitulada A
vida...
—... popular da Bahia... — Archanjo superara a
humilhação inicial, dispunha-se ao diálogo. — Deixei um
exemplar para o senhor na secretaria.
— Diga senhor professor — corrigiu, áspero, o lente ilustre. — Senhor professor, não senhor apenas, não se esqueça. Conquistei o título em concurso, tenho direito a ele e o exijo.
Compreendeu?
— Sim, senhor professor — a voz distante e álgida, o único desejo de Pedro Archanjo era ir-se embora.
— Diga-me: as diversas anotações sobre costumes, festas tradicionais, cerimônias fetichistas, que você classifica de
obrigações, são realmente exatas?
— Sim, senhor professor.
— Sobre cucumbis, por exemplo. São verídicas?
— Sim, senhor professor.
— Não foram inventadas por você?
— Não, senhor professor.
— Li sua brochura e, tendo em conta quem a escreveu — novamente o examinou com olhos fulvos e hostis —, não lhe
nego certo mérito, limitado a algumas observações, bem entendido. Carece de qualquer seriedade científica e as conclusões
sobre mestiçagem são necessidades delirantes e perigosas. Mas nem por isso deixa de ser repositório de fatos dignos de
atenção. Vale leitura.
AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. 47. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 143-144.
A leitura do fragmento de “Tenda dos Milagres”, devidamente contextualizado na obra, permite afirmar:
Ao aproximar-se, Pedro Archanjo notou que Nilo Argolo punha os braços atrás das costas para impedir qualquer tentativa de aperto de mão. Um calor subiu-lhe ao rosto.
Com o desplante de quem examinasse bicho ou coisa, atentamente o professor estudou a fisionomia e o porte do funcionário; no rosto infenso refletiu-se indisfarçável surpresa ao constatar o garbo e a limpeza nos trajes do mulato, o perfeito decoro. De certos mestiços, o catedrático pensava e, em determinados casos, até dizia: Este merecia ser branco, o que o desgraça é o sangue africano.
— Foi você quem escreveu uma brochura intitulada A vida...
—... popular da Bahia... — Archanjo superara a humilhação inicial, dispunha-se ao diálogo. — Deixei um exemplar para o senhor na secretaria.
— Diga senhor professor — corrigiu, áspero, o lente ilustre. — Senhor professor, não senhor apenas, não se esqueça. Conquistei o título em concurso, tenho direito a ele e o exijo. Compreendeu?
— Sim, senhor professor — a voz distante e álgida, o único desejo de Pedro Archanjo era ir-se embora.
— Diga-me: as diversas anotações sobre costumes, festas tradicionais, cerimônias fetichistas, que você classifica de obrigações, são realmente exatas?
— Sim, senhor professor.
— Sobre cucumbis, por exemplo. São verídicas?
— Sim, senhor professor.
— Não foram inventadas por você?
— Não, senhor professor.
— Li sua brochura e, tendo em conta quem a escreveu — novamente o examinou com olhos fulvos e hostis —, não lhe nego certo mérito, limitado a algumas observações, bem entendido. Carece de qualquer seriedade científica e as conclusões sobre mestiçagem são necessidades delirantes e perigosas. Mas nem por isso deixa de ser repositório de fatos dignos de atenção. Vale leitura.
AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. 47. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 143-144.
A leitura do fragmento de “Tenda dos Milagres”, devidamente contextualizado na obra, permite afirmar: