No texto, a moça
O entendimento dos contos
— Agora você vai me contar uma história de amor — disse o rapaz à moça. — Quero ouvir uma história de amor em
que entrem caravelas, pedras preciosas e satélites artificiais.
— Pois não — respondeu a moça, que acabara de concluir o mestrado de contador de histórias, e estava com a
imaginação na ponta da língua. — Era uma vez um país onde
só havia água, eram águas e mais águas, e o governo como
tudo mais se fazia em embarcações atracadas ou em movimento, conforme o tempo. Osmundo mantinha uma grande
indústria de barcos, mas não era feliz, porque Sertória, objeto
dos seus sonhos, se recusava a casar com ele. Osmundo
ofereceu-lhe um belo navio embandeirado, que ela recusou.
Só aceitaria uma frota de dez caravelas, para si e para seus
familiares.
Ora, ninguém sabia fazer caravelas, era um tipo de
embarcação há muito fora de uso. Osmundo apresentou
um mau produto, que Sertória não aceitou, enumerando os
defeitos, a começar pelas velas latinas, que de latinas não
tinham um centavo. Osmundo, desesperado, pensou em
afogar-se, o que fez sem êxito, pois desceu no fundo das
águas e lá encontrou um cofre cheio de esmeraldas, topázios, rubis, diamantes e o mais que você imagina. Voltou
à tona para oferecê-lo à rígida Sertória, que virou o rosto.
Nada a fazer, pensou Osmundo; vou transformar-me em satélite artificial. Mas os satélites artificiais ainda não tinham
sido inventados. Continuou humilde satélite de Sertória, que
ultimamente passeava de uma lancha para outra, levando-o
preso a um cordão de seda, com a inscrição “Amor imortal”.
Acabou.
— Mas que significa isso? — perguntou o moço, insatisfeito. — Não entendi nada.
— Nem eu — respondeu a moça —, mas os contos devem
ser contados, e não entendidos; exatamente como a vida.
(Contos plausíveis, 2012.)
— Agora você vai me contar uma história de amor — disse o rapaz à moça. — Quero ouvir uma história de amor em que entrem caravelas, pedras preciosas e satélites artificiais.
— Pois não — respondeu a moça, que acabara de concluir o mestrado de contador de histórias, e estava com a imaginação na ponta da língua. — Era uma vez um país onde só havia água, eram águas e mais águas, e o governo como tudo mais se fazia em embarcações atracadas ou em movimento, conforme o tempo. Osmundo mantinha uma grande indústria de barcos, mas não era feliz, porque Sertória, objeto dos seus sonhos, se recusava a casar com ele. Osmundo ofereceu-lhe um belo navio embandeirado, que ela recusou. Só aceitaria uma frota de dez caravelas, para si e para seus familiares.
Ora, ninguém sabia fazer caravelas, era um tipo de embarcação há muito fora de uso. Osmundo apresentou um mau produto, que Sertória não aceitou, enumerando os defeitos, a começar pelas velas latinas, que de latinas não tinham um centavo. Osmundo, desesperado, pensou em afogar-se, o que fez sem êxito, pois desceu no fundo das águas e lá encontrou um cofre cheio de esmeraldas, topázios, rubis, diamantes e o mais que você imagina. Voltou à tona para oferecê-lo à rígida Sertória, que virou o rosto. Nada a fazer, pensou Osmundo; vou transformar-me em satélite artificial. Mas os satélites artificiais ainda não tinham sido inventados. Continuou humilde satélite de Sertória, que ultimamente passeava de uma lancha para outra, levando-o preso a um cordão de seda, com a inscrição “Amor imortal”. Acabou.
— Mas que significa isso? — perguntou o moço, insatisfeito. — Não entendi nada.
— Nem eu — respondeu a moça —, mas os contos devem ser contados, e não entendidos; exatamente como a vida.
Gabarito comentado
Tema central: Interpretação de texto e coerência textual. Esta questão exige do candidato a capacidade de compreender a relação entre o discurso literário e a reflexão sobre a própria vida, sem recorrer à busca de explicações lógicas imediatas.
Análise da alternativa correta:
Alternativa E) acredita que os contos, como a vida, prescindem de explicação.
No desfecho do texto, a moça afirma: “os contos devem ser contados, e não entendidos; exatamente como a vida.” Aqui, percebe-se uma reflexão metafórica em que o conto se compara à existência humana: ambos não estão necessariamente sujeitos a explicações racionais, mas sim vivem-se/narram-se. Segundo Evanildo Bechara, a coerência textual está na relação lógica entre as ideias; neste caso, a moça rompe com a expectativa tradicional de sentido, reforçando o ponto de que não se exige explicação.
Por que as demais estão incorretas?
A) Não há elementos que indiquem fingimento ou vontade de perturbar o rapaz. Falta base no texto para essa interpretação.
B) Não se trata de finais felizes ou tristes (“dificilmente termina bem”); o sentido da fala da moça não implica pessimismo, mas a não necessidade de explicação.
C) A alternativa fala sobre o “sentido da vida” caber ou não num conto, porém a reflexão da moça é outra: contos e vida não necessitam ser entendidos, e sim vividos/contados.
D) Pelo contrário, interpretar que a vida “precisa ser decifrada” nega o ponto central do texto. A moça defende que não há necessidade de decifração.
Estratégia para questões desse tipo: Leia com atenção as frases finais do texto: muitas vezes, o sentido principal está numa “conclusão reflexiva”. Desconfie de alternativas que tragam generalizações, julgamentos ou que distorçam a proposta filosófica apresentada pelo autor.
Resumo de regra e conceito: Segundo Koch (“O Texto e a Construção dos Sentidos”), a coerência textual baseia-se na construção de sentido a partir dos elementos explícitos e implícitos do texto. Aqui, o implícito é: nem tudo precisa ser traduzido em explicação lógica.
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