De acordo com o texto, um dos ingredientes da “receitinha básica” para se viver em cima do muro é
misturar “meias palavras em um discurso politicamente correto”. Disso depreende-se que é necessário
Leia o texto a seguir e responda à questão:
Viver em cima do muro é prejudicial à saúdeÉlida Ramirez Ocre. Sempre me incomodou essa cor. Sabe aquele marrom amarelado? O tal burro fugido? Exato isso! Quando vejo alguém com roupa ocre, tenho maior aflição. Certa feita, entrei em um consultório médico to-di-nho ocre. Paredes, chão, quadros. Tive uma gastura horrorosa. A sensação é que o ocre existe no dilema de não ser amarelo nem marrom. Invejando o viço das outras colorações definidas e nada fazendo para mudar sua tonalidade. Isso explica meu desconforto. O ocre, para mim, ultrapassa o sentido de cor. Ele dá o tom da existência do viver em cima do muro. E conviver com gente assim é um transtorno. É fato que a tal “modernidade líquida”, definida por Bauman, favorece o comportamento. Pensemos. Segundo o sociólogo, a globalização trouxe o encurtamento das distâncias, borrando fronteiras. E, ao reconfigurar esses limites geográficos, mudou a concepção de si do sujeito bem como sua relação com as instituições. Muito rapidamente houve um esfacelamento de estruturas rígidas como a família e o estado. Essa mudança do sólido para líquido detonou o processo de individualização generalizado no mundo ocidental reforçando o conceito de que “Nada é para durar” (Bauman). Então, desse jeito dá para ser mutante pleno nesse viver em cima do muro. Nem amarelo ou marrom. Ocre. Por isso, discursos ocos de pessoas com personalidades fluidas ganham espaço. E vão tomando a forma do ambiente, assim como a água. Uma fusão quase nebulosa que embaça o comprometimento. Nota-se ainda certo padrão do viver em cima do muro. Como uma receitinha básica. Vejam só: Misture meias palavras em um discurso politicamente correto. Inclua, com ar de respeito, a posição contrária. Cozinhe em banho-maria. Deixe descansar, para sempre, se puder. Se necessário, volte ao fogo brando. Não mexa mais. Sirva morno. Viu? Simples de fazer. Difícil é digerir. É porque, na prática, a legião de ocres causa a maior complicação. Quem vive do meio de campo, sem decidir sua cor publicamente, não tem o inconveniente de arcar com as escolhas. Quase nunca se tornará um desafeto. Fará pouco e, muitas vezes, será visto com um sujeito comedido. Quem não escolhe tem mais liberdade para mudar de ideia. Não fica preso ao dito anteriormente. Exatamente porque não disse nada. Não se comprometeu com nada. Apenas proferiu ideias genéricas e inconclusivas estando liberado para transitar por todos os lados, segundo sua necessidade. Ao estar em tudo não estando em nada, seja para evitar responsabilidades, não se expor à crítica ou fugir de polêmicas, o em cima do muro se esconde, sobrecarrega e expõe aqueles que bancam opiniões. Portanto, conviver com quem não toma posição, de forma crônica, atrasa a vida. Ao se esquivar de escolher, o indivíduo condena o outro a fazê-lo em seu lugar. Reconheço que, às vezes, a gente leva tempo para se decidir por algo. Todos temos medos que nos impedem de agir. Mas ouso dizer: nunca tomar partido nas situações é covardia. Parece, inclusive, que o viver em cima do muro é mais confortável que a situação do mau-caráter. É que o sacana, ao menos, se define. Embora atue na surdina, sua ação reflete um posicionamento. Já o indefinido, não. Ele vive na toada do alheio. E, curiosamente, também avacalha o próprio percurso por delegar ao outro a sua existência. Recorro outra vez a Bauman para esclarecer: “Escapar da incerteza é um ingrediente fundamental presumido, de todas e quaisquer imagens compósitas da felicidade genuína, adequada e total, sempre parece residir em algum lugar à frente”. Por isso, atenção! Viver em cima do muro é prejudicial à sua própria saúde. Facilita a queda e impede novos caminhos. Um deles, o da alegria de poder ser. Talvez seja isso a que Bauman se refere quando trata da fuga da incerteza para alcançar a felicidade genuína. E, pensando bem, desconheço imagem de alegria predominantemente ocre. Texto adaptado e disponível em: https://www.revistabula.com/16514-viver-em-cima-do-muro-e-prejudicial-a-saude/. Acesso em 14 de ago. 2018.
Gabarito comentado
Tema central: Interpretação de Texto, com foco na compreensão de expressões idiomáticas (“meias palavras”), análise de discurso e identificação das intenções comunicativas presentes no texto.
Explicação e regra aplicada: O comando exige do candidato a capacidade de inferir intenções e significados implícitos. Segundo a norma-padrão e gramáticos como Evanildo Bechara, interpretar um texto envolve relacionar palavras-chave e analisar o sentido delas no contexto.
No trecho mencionado, “misture meias palavras em um discurso politicamente correto”, a autora faz uma crítica à postura de quem evita se comprometer. A expressão “meias palavras” remete à linguagem evasiva, ou seja, aquela que não se posiciona claramente e foge de conflitos.
Alternativa correta: E) dizer palavras evasivas, evitando polêmicas e embates.
Justificativa: Esta alternativa recupera fielmente a ideia de “meias palavras” e o objetivo do discurso modelado para não gerar polêmicas, como explicitado no texto. O indivíduo se expressa de forma genérica e sem firmeza, adotando um tom que evita o confronto — exatamente o ponto central do trecho.
Análise das alternativas incorretas:
- A) Dizer palavras simples e claras não corresponde a “meias palavras”, pois essa expressão significa falar de modo indireto e pouco claro.
- B) Expressar-se claramente e com comprometimento contradiz a intenção do texto, que critica a falta de posicionamento.
- C) Neutralizar a linguagem, no contexto da alternativa, poderia ser confundido, mas ir de encontro à liberdade de expressão não corresponde ao sentido no texto, que não aborda censura, mas sim evasão e omissão.
- D) A alternativa sugere palavras taxativas e ausência de ética, mas “meias palavras” implicam justamente o oposto: falta de posicionamento firme.
Dica de interpretação: Atenção a expressões idiomáticas e críticas indiretas! O examinador pode substituir a intenção do texto (evasiva) por termos que sugiram claridade ou agressividade — pegadinhas clássicas. Concentre-se na ideia geral: quem usa “meias palavras” procura escapar do conflito, não afrontá-lo nem esclarecer.
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