Há contradição implícita nas frases
Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco,
e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma
alma agreste.
E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher,
para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.
Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as
ideias não vêm, ou vêm muito numerosas - e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio
algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.
Emoções indefiníveis me agitam - inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com
Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: desespero, raiva, um peso
enorme no coração.
Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita
de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava
as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão.
(Graciliano Ramos)
Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.
E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.
Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as ideias não vêm, ou vêm muito numerosas - e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.
Emoções indefiníveis me agitam - inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: desespero, raiva, um peso enorme no coração.
Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão.
(Graciliano Ramos)
I Conheci que Madalena era boa em demasia...
II ...nunca se revelou inteiramente.
I ...compreendo que perco o tempo.
II para que serve esta narrativa?
I Releio algumas linhas...
II Não vale a pena tentar corrigi-las
I Emoções indefiníveis me agitam...
II ...desejo doido de voltar...
Gabarito comentado
Tema central: A questão analisa interpretação de texto, especificamente a coerência textual e a capacidade de identificar uma contradição implícita entre duas ideias.
Justificativa da alternativa correta (A):
O núcleo da resposta está no conceito de contradição implícita, ou seja, uma oposição de ideias não declarada explicitamente, mas perceptível ao leitor atento. Ao afirmar que “Conheci que Madalena era boa em demasia”, o narrador sugere conhecimento pleno de uma característica marcante da esposa. Já ao dizer “nunca se revelou inteiramente”, ele assume não tê-la conhecido por completo. Assim, uma frase contradiz logicamente a outra, ferindo o princípio da não contradição (referido por autores como Evanildo Bechara e Celso Cunha & Lindley Cintra).
Esta habilidade é central em provas de vestibular: a banca avalia se o candidato reconhece tensões internas no discurso do texto, competência essencial para interpretação em livros literários ou argumentos dissertativos.
Análise das alternativas incorretas:
B) Aqui não há conflito, pois as duas frases apenas reforçam a sensação de inutilidade do narrador em relação à escrita: uma reconhece o “tempo perdido”, a outra questiona o sentido da narrativa, mantendo-se coerentes.
C) Embora apresente situações opostas (ideias não vêm OU vêm demais), não há contradição, pois são cenários alternativos e não excludentes, ou seja, ambos podem ocorrer em momentos diferentes.
D) As frases não se chocam: o narrador pode ler o que escreveu e, mesmo assim, decidir não corrigir. Não há quebra de lógica interna.
E) O desejo intenso de voltar compõe justamente o sentimento de agitação indefinível; aqui, não há oposição, mas um exemplo do que sente o narrador.
Estratégia para questões similares: Busque sempre identificar se as ideias apresentadas podem coexistir sem choque lógico. Se uma afirmação nega ou enfraquece outra, há possível contradição. Fique atento a pegadinhas: oposição de situações nem sempre é contradição de sentido!
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