Chama atenção o drama vivido pela personagem do fragmento extraído do livro A mesa dos inocentes, de Adelice Barros (Texto 4).

Marque a alternativa correta concernente às reflexões da personagem no fragmento em questão:

TEXTO 4
A dúvida, continuou Laura, maldita dúvida. Essa é minha companheira, a sombra inconveniente que me segura pelos calcanhares, que há de seguir comigo até o túmulo. A morte de Tomázia, será que ela me convinha? Talvez me conviesse. Essa hipótese, eu não tenho como descartar. Seu desaparecimento anularia a prova de meu crime? Teria poder para apaziguar a culpa que continuava latejando mesmo depois de meu rompimento definitivo com Vítor? A dúvida acabou se revelando muito superior à certeza. Mil, um milhão de vezes mais forte. Talvez se eu tivesse sido obrigada a confessar meu crime aos pés de um juiz, se tivesse sido enjaulada entre mulheres que me odiavam, que me submetessem ao horror do estupro, que atentassem contra minha pessoa, a sensação de culpa tivesse sido atenuada. Juro que cheguei a sentir inveja do destino reservado às muçulmanas que cometem o pecado do adultério. Desejei, sim, ser publicamente difamada, arrastada pelos cabelos, enterrada até o pescoço, e, finalmente, ter a cabeça esfacelada a pedradas. Qualquer coisa, qualquer situação limite teria sido menos penosa do que seguir carregando a culpa, enquanto simulava a mais absoluta indiferença. Não tenho vocação para o disfarce, a simulação. Ah, como eu lamentei a perda de meu direito de exibir minha fraqueza como outras mulheres faziam! Mas não, eu tinha a permanente obrigação de ser forte, de estar preparada para o momento em que meu mundo viesse abaixo, como veio.
A visão de mulheres com as cabeças esfaceladas, transformadas em um bolo de carne sangrento e disforme, partículas de cérebro espatifadas pra tudo que é lado, arrepiou meu corpo dolorido. Sentindo um princípio de náusea, comecei a fungar uma emoçãozinha desconfiada. Essa bruxa tá me embromando, penso, daqui a pouco eu entro na dela, caio em prantos e, alagada de piedade, abraço a velha, aliso seus cabelos grisalhos, cubro-lhe a face enrugada com beijinhos consoladores. Calma, tia, calma! Cuidado com a pressão. Tem aí algum tranquilizante que eu possa lhe dar?
(BARROS, Adelice da Silveira. A mesa dos inocentes. Goiânia: Kelps, 2010. p. 23.)

Ela se esforça para pintar o mundo exatamente como ele é, nem que para isso tenha de se expor, confessando suas fraquezas e frustrando qualquer possibilidade de se encontrar na vida.

Ela imagina outra realidade, na qual possa se ver livre de seus pecados pela via do sofrimento reparador e purificador de sua consciência, que não lhe dá um só instante de paz.

Ela é absolutamente confusa: não consegue articular suas ideias, nem mesmo se reconhece ante a realidade na qual se atirou por vontade própria.

Ela ironiza sua própria sombra, numa clara alusão ao que se percebe nas relações dos dias atuais, em que as pessoas devem, antes de mais nada, aprender a não confiar em ninguém.

Gabarito comentado

Manuela Cardoso Monitor do Qconcursos

Alternativa correta: B

Tema central: o trecho explora a culpa íntima e a busca por alívio moral. A personagem imagina formas de sofrer publicamente para que sua consciência seja purificada — ideia próxima de penitência e catarse.

Resumo teórico rápido: Em filosofia e literatura, a culpa relaciona-se à consciência moral (Kant: dever e responsabilidade; no plano literário, a catharsis aristotélica descreve alívio por sofrimento dramático). A personagem deseja punição externa como forma de expiação: sofrimento reparador que atenua a angústia interna.

Justificativa da alternativa B: O texto contém frases claras que sustentam B: ela considera que a morte da vítima "anularia a prova do crime?" e deseja ser "publicamente difamada... arrastada... esfacelada a pedradas". Essas imagens mostram que ela imagina um sofrimento extremo como forma de libertar-se da culpa. A insistência na dúvida que não a deixa em paz confirma que sua consciência não lhe dá sossego e que ela imagina a purificação pela dor pública — exatamente a ideia de sofrimento reparador apontada em B.

Análise das alternativas incorretas:

A. Falsa — o trecho não manifesta vontade de "pintar o mundo exatamente como ele é" nem de expor-se para frustrar projetos de vida; ela deseja ao contrário uma solução que alivie a culpa através de punição.

C. Falsa — embora aflita, a personagem é coerente em seu raciocínio; suas ideias são articuladas (hipóteses, desejos, comparações) e revelam consciência clara do problema, não confusão absoluta.

D. Falsa — não há ironia sobre "não confiar em ninguém" nem crítica social genérica; o foco é íntimo: a sombra da dúvida e o anseio por expiação, não uma lição sobre relações sociais contemporâneas.

Estratégia para resolver questões assim: foque em palavras-chave (culpa, desejo de punição, dúvida persistente) e nas imagens fortes (punição pública). Elimine alternativas que extrapolem o enunciado ou que reinterpretam o foco emocional como confusão ou ironia social.

Referência: BARROS, Adelice da Silveira. A mesa dos inocentes (fragmento).

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