O texto aborda questões polêmicas
através do ponto de vista das personagens
representadas pelo zelador e pela “índia”. Estas
questões ficam melhor identificadas como:
TEXTO I
A televisão
(Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Tony Belloto)
A televisão
Me deixou burro
Muito burro demais
Oh! Oh! Oh!
Agora todas coisas
Que eu penso
Me parecem iguais
Oh! Oh! Oh!
O sorvete me deixou gripado
Pelo resto da vida
E agora toda noite
Quando deito
É boa noite, querida
Oh! Cride, fala pra mãe
Que eu nunca li num livro
Que o espirro
Fosse um vírus sem cura
Vê se me entende
Pelo menos uma vez
Criatura!
Oh! Cride, fala pra mãe!
A mãe diz pra eu fazer
Alguma coisa
Mas eu não faço nada
Oh! Oh! Oh!
A luz do sol me incomoda
Então deixa
A cortina fechada
Oh! Oh! Oh!
É que a televisão
Me deixou burro
Muito burro demais
E agora eu vivo
Dentro dessa jaula
Junto dos animais
Oh! Cride, fala pra mãe
Que tudo que a antena captar
Meu coração captura
Vê se me entende
Pelo menos uma vez
Criatura!
Oh! Cride, fala pra mãe!
Titãs. Televisão. Lp. Gravadora WEA, 1985.
TEXTO II
Estorvo (fragmento)
Vejo tumulto defronte ao edifício do meu amigo.
Aglomeração, um camburão, duas joaninhas, um
rabecão, vários carros de reportagem, guardas
desviando o trânsito. No meio do povo, compreendo que
houve um crime, alguém morreu esfaqueado e
estrangulado. Vem chegando a sirene de um segundo
camburão, e o empurra-empurra acaba por me levar ao
miolo do acontecimento. Uma corda vermelha isola a
calçada do velho prédio, formando uma espécie de
ringue. A televisão entrevista o zelador sob a marquise
da portaria. Deve estar ruim de filmar, pois o zelador
olha para o chão e não fala direito, parece um
condenado. Penso que é ele o criminoso, mas em
seguida me convenço de que está somente muito
envergonhado pelo seu edifício. O repórter pergunta se
a vítima costumava receber rapazes, e o zelador faz sim
com a cabeça, mais confessando que assentindo. A
entrevista é prejudicada por uma baixinha com cara de
índia e lenço na cabeça, que se desvencilha de um
policial e investe contra o zelador, gritando "diga que
conhece meu filho, miserável!". O policial levanta a índia
baixinha e deposita-a fora do cordão de isolamento. Ela
passa outra vez sob o cordão e agora se dirige ao
público. Diz "não tem televisão aí?" e diz "ninguém vai
me entrevistar?". Um rapaz que se apresenta como
repórter do Diário Vigilante pergunta o que fazia o
suspeito no local do crime. Ela diz "que suspeito o quê" e
"que local do crime o quê", e diz "meu filho veio me ver,
foi detido entrando no prédio, se fosse suspeito estaria
fugindo", e diz "onde é que já se viu suspeito fugir para
dentro?". Sem mais nem mais, começo a ficar a favor da
mãe índia. O do Diário Vigilante vai fazer outra pergunta,
mas ela o interrompe e diz que trabalha no 204 há
quinze anos, que todo mundo sabe quem ela é, que
aquele miserável ali conhece o filho dela e não o
defende porque tem preconceito de cor. Vai atacar de
novo o zelador, mas é suspensa pelo policial. Outro
repórter de tevê indaga do zelador se a vítima era
homossexual. O zelador resmunga "isso aí eu não sei
porque nunca vi". A índia responde à Rádio Primazia que
prenderam o filho porque ele estava sem documento.
Diz "meu filho estava voltando da praia, não é crime ir na
praia, ninguém vai na praia com carteira de trabalho
metida no calção". Um sujeito atrás de mim diz que
também é de jornal e pergunta “afinal a bichona era
artista ou o quê?''. Ela responde "a bichona sei lá, parece
que era professor de ginástica". Aproxima-se o repórter
da TV Promontório dizendo "ouvimos também a mãe do
principal suspeito". Aí a índia perde a razão, agarra as
lapelas do repórter e desata a chorar no microfone e
berrar "ele não é criminoso!, meu filho é um moço
decente!", mas o cameraman, que está trepado no capô
da camionete, grita "não valeu, não gravou nada, troca a bateria!". A índia para de chorar, olha para o setor da
imprensa e diz "imagine meu filho, que até é doente,
estrangulando um professor de ginástica". Volta o
repórter da TV Promontório e pede-lhe para repetir a
fala anterior, que ele achou bem forte.
BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
TEXTO I
A televisão
(Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Tony Belloto)
A televisão
Me deixou burro
Muito burro demais
Oh! Oh! Oh!
Agora todas coisas
Que eu penso
Me parecem iguais
Oh! Oh! Oh!
O sorvete me deixou gripado
Pelo resto da vida
E agora toda noite
Quando deito
É boa noite, querida
Oh! Cride, fala pra mãe
Que eu nunca li num livro
Que o espirro
Fosse um vírus sem cura
Vê se me entende
Pelo menos uma vez
Criatura!
Oh! Cride, fala pra mãe!
A mãe diz pra eu fazer
Alguma coisa
Mas eu não faço nada
Oh! Oh! Oh!
A luz do sol me incomoda
Então deixa
A cortina fechada
Oh! Oh! Oh!
É que a televisão
Me deixou burro
Muito burro demais
E agora eu vivo
Dentro dessa jaula
Junto dos animais
Oh! Cride, fala pra mãe
Que tudo que a antena captar
Meu coração captura
Vê se me entende
Pelo menos uma vez
Criatura!
Oh! Cride, fala pra mãe!
Titãs. Televisão. Lp. Gravadora WEA, 1985.
TEXTO II
Estorvo (fragmento)
Vejo tumulto defronte ao edifício do meu amigo. Aglomeração, um camburão, duas joaninhas, um rabecão, vários carros de reportagem, guardas desviando o trânsito. No meio do povo, compreendo que houve um crime, alguém morreu esfaqueado e estrangulado. Vem chegando a sirene de um segundo camburão, e o empurra-empurra acaba por me levar ao miolo do acontecimento. Uma corda vermelha isola a calçada do velho prédio, formando uma espécie de ringue. A televisão entrevista o zelador sob a marquise da portaria. Deve estar ruim de filmar, pois o zelador olha para o chão e não fala direito, parece um condenado. Penso que é ele o criminoso, mas em seguida me convenço de que está somente muito envergonhado pelo seu edifício. O repórter pergunta se a vítima costumava receber rapazes, e o zelador faz sim com a cabeça, mais confessando que assentindo. A entrevista é prejudicada por uma baixinha com cara de índia e lenço na cabeça, que se desvencilha de um policial e investe contra o zelador, gritando "diga que conhece meu filho, miserável!". O policial levanta a índia baixinha e deposita-a fora do cordão de isolamento. Ela passa outra vez sob o cordão e agora se dirige ao público. Diz "não tem televisão aí?" e diz "ninguém vai me entrevistar?". Um rapaz que se apresenta como repórter do Diário Vigilante pergunta o que fazia o suspeito no local do crime. Ela diz "que suspeito o quê" e "que local do crime o quê", e diz "meu filho veio me ver, foi detido entrando no prédio, se fosse suspeito estaria fugindo", e diz "onde é que já se viu suspeito fugir para dentro?". Sem mais nem mais, começo a ficar a favor da mãe índia. O do Diário Vigilante vai fazer outra pergunta, mas ela o interrompe e diz que trabalha no 204 há quinze anos, que todo mundo sabe quem ela é, que aquele miserável ali conhece o filho dela e não o defende porque tem preconceito de cor. Vai atacar de novo o zelador, mas é suspensa pelo policial. Outro repórter de tevê indaga do zelador se a vítima era homossexual. O zelador resmunga "isso aí eu não sei porque nunca vi". A índia responde à Rádio Primazia que prenderam o filho porque ele estava sem documento. Diz "meu filho estava voltando da praia, não é crime ir na praia, ninguém vai na praia com carteira de trabalho metida no calção". Um sujeito atrás de mim diz que também é de jornal e pergunta “afinal a bichona era artista ou o quê?''. Ela responde "a bichona sei lá, parece que era professor de ginástica". Aproxima-se o repórter da TV Promontório dizendo "ouvimos também a mãe do principal suspeito". Aí a índia perde a razão, agarra as lapelas do repórter e desata a chorar no microfone e berrar "ele não é criminoso!, meu filho é um moço decente!", mas o cameraman, que está trepado no capô da camionete, grita "não valeu, não gravou nada, troca a bateria!". A índia para de chorar, olha para o setor da imprensa e diz "imagine meu filho, que até é doente, estrangulando um professor de ginástica". Volta o repórter da TV Promontório e pede-lhe para repetir a fala anterior, que ele achou bem forte.
BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.