Pelo que se depreende do posicionamento assumido pelo autor no excerto, suas “convicções começam a esvair-se” porque ele
Resmungos gramaticais
Não tenho, obviamente, a intenção de aborrecer o leitor com minhas manias. Aliás, se dependesse de mim, só
escreveria crônicas divertidas em vez de resmungos, graçolas. Mas é que sofro de manias e uma delas é de chatear-
me com certas expressões, que vão se tornando comuns e que me parecem erradas. Está bem, está bem, já sei que
não existem erros no uso do idioma, pelos menos, essa é a opinião dos linguistas, e a última coisa que quero é ser
considerado por eles um sujeito ultrapassado e ranheta. Mas que posso fazer? Se o cara, referindo-se à semana em
que estamos, diz "essa" em vez de "esta", tenho vontade de lhe mostrar a língua. (...)
Como disse, não estou querendo encher a paciência dos leitores, mas já repararam como alguns comentaristas
de futebol usam certos verbos? Sabemos que o futebol tem um universo verbal próprio, bastante pitoresco, aliás,
contra o qual nada tenho a opor, muito pelo contrário. Acho até divertido quando o pessoal se refere a "essa" bola.
Nunca dizem, por exemplo, "ele podia ter chutado a bola" e, sim, ter chutado "essa" bola. O jogador nunca "perdeu a
bola" e, sim, "perdeu o domínio". São modos de falar muito pitorescos. O que me incomoda, porém, é quando dizem
"Ronaldo machucou". Machucou o que? O pé, o tornozelo? Não, querem dizer que ele "se machucou", mas
decretaram o fim do modo reflexivo do verbo machucar. (...)
Mas ao folhear um volume de Machado de Assis, deparo-me com a seguinte expressão: "A família Batista foi
aposentada em casa de Santos". Como aposentada na casa? Mas logo percebo que ele se refere aos aposentos que
constituem uma casa, ou seja, a família Batista passou a ocupar um aposento da casa de Santos e, por isso, ficou
"aposentada" ali. Descubro que a acepção atual é que é metafórica e decorrente daquela. E aí minhas convicções de
patrulheiro vernacular começam a esvair-se.
Ferreira Gullar, Folha de S. Paulo, 15.06.08
Não tenho, obviamente, a intenção de aborrecer o leitor com minhas manias. Aliás, se dependesse de mim, só
escreveria crônicas divertidas em vez de resmungos, graçolas. Mas é que sofro de manias e uma delas é de chatear-
me com certas expressões, que vão se tornando comuns e que me parecem erradas. Está bem, está bem, já sei que
não existem erros no uso do idioma, pelos menos, essa é a opinião dos linguistas, e a última coisa que quero é ser
considerado por eles um sujeito ultrapassado e ranheta. Mas que posso fazer? Se o cara, referindo-se à semana em
que estamos, diz "essa" em vez de "esta", tenho vontade de lhe mostrar a língua. (...)
Como disse, não estou querendo encher a paciência dos leitores, mas já repararam como alguns comentaristas
de futebol usam certos verbos? Sabemos que o futebol tem um universo verbal próprio, bastante pitoresco, aliás,
contra o qual nada tenho a opor, muito pelo contrário. Acho até divertido quando o pessoal se refere a "essa" bola.
Nunca dizem, por exemplo, "ele podia ter chutado a bola" e, sim, ter chutado "essa" bola. O jogador nunca "perdeu a
bola" e, sim, "perdeu o domínio". São modos de falar muito pitorescos. O que me incomoda, porém, é quando dizem
"Ronaldo machucou". Machucou o que? O pé, o tornozelo? Não, querem dizer que ele "se machucou", mas
decretaram o fim do modo reflexivo do verbo machucar. (...)
Mas ao folhear um volume de Machado de Assis, deparo-me com a seguinte expressão: "A família Batista foi
aposentada em casa de Santos". Como aposentada na casa? Mas logo percebo que ele se refere aos aposentos que
constituem uma casa, ou seja, a família Batista passou a ocupar um aposento da casa de Santos e, por isso, ficou
"aposentada" ali. Descubro que a acepção atual é que é metafórica e decorrente daquela. E aí minhas convicções de
patrulheiro vernacular começam a esvair-se.
Ferreira Gullar, Folha de S. Paulo, 15.06.08
Gabarito comentado
Tema central da questão:
A questão explora interpretação de texto e mudança semântica/vibração da linguagem, focando na compreensão do posicionamento do autor diante das transformações naturais da língua portuguesa ao longo do tempo.
Justificativa da alternativa correta (C):
A alternativa C é a correta porque, no trecho analisado, Ferreira Gullar relata que ao folhear Machado de Assis, percebe que o uso da palavra “aposentada” não corresponde ao sentido atual, mas a um sentido antigo. Ao identificar essa transformação, suas crenças rígidas quanto ao uso correto da língua começam a esvair-se, pois ele reconhece, na prática, que a língua é dinâmica e se reinventa. É esse momento de confronto com a mudança linguística — evidências de transformação — que abala suas convicções.
Conforme Celso Cunha e Lindley Cintra, “a língua está em constante mudança semântica, representando escolhas que se consagraram pelo uso”. Assim, a reflexão de Gullar está alinhada à teoria da evolução linguística e à polissemia, como ressalta Bechara na referência à natureza viva da língua.
Análise das alternativas incorretas:
A) Incorreta: O autor reflete sobre si mesmo, mas não diz que foi tachado pelos linguistas de ultrapassado. Isso é apenas uma preocupação, não a causa da mudança de postura.
B) Incorreta: O autor lamenta não escrever só crônicas divertidas, mas isso não está relacionado com suas convicções linguísticas.
D) Incorreta: Ele acha o universo dos comentaristas “pitoresco” e até divertido, mas esse aspecto não provoca a mudança em suas convicções.
E) Incorreta: O incômodo com jornalistas existe, mas o texto caminha para uma atitude de reflexão, não para simples sofrimento.
Estratégias de resolução:
Atenção às palavras de “descoberta”, “percepção”, “mudança” ao longo do texto! Busque identificar, por meio de indicadores textuais, o momento em que o narrador demonstra mudança de ideia.
Cuide para não se fixar apenas em trechos iniciais; observe sempre o desfecho da análise do autor. Lembre: provas gostam de perguntar pelo ponto de inflexão no pensamento do autor.
Resumo:
O aprendizado central é reconhecer que a língua evolui, e grandes autores, como Machado de Assis, utilizavam acepções hoje consideradas (ou não) corretas pelo uso. A alternativa C revela essa reflexão didática.
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