Questão 87e263be-cb
Prova:IF-PR 2017
Disciplina:Português
Assunto:Interpretação de Textos, Noções Gerais de Compreensão e Interpretação de Texto

Assinale a alternativa que responde à seguinte indagação.
Por que a resposta: “não, tia Olívia, não eram de cera, eram de algodão suas cerejas vermelhas” está no começo do texto, se a pergunta está no final dele?

O texto a seguir, um excerto do conto As Cerejas, de Lygia Fagundes Telles, servirá de base para a questão. 

     Aquela gente teria mesmo existido? Madrinha tecendo a cortina de crochê com um anjinho a esvoaçar por entre rosas, a pobre Madrinha sempre afobada, piscando os olhinhos estrábicos, vocês não viram onde deixei meus óculos? A preta Dionísia a bater as claras de ovos em ponto de neve, a voz ácida contrastando com a doçura dos cremes, esta receita é nova... Tia Olívia enfastiada e lânguida, abanando-se com uma ventarola chinesa, a voz pesada indo e vindo ao embalo da rede, fico exausta no calor... (...)
     A casa em meio do arvoredo, o rio, as tardes como que suspensas na poeira do ar - desapareceu tudo sem deixar vestígios. Ficaram as cerejas, só elas resistiram com sua vermelhidão de loucura. Basta abrir a gaveta: algumas foram roídas por alguma barata e nessas o algodão estoura, empelotado, não, tia Olívia, não eram de cera, eram de algodão suas cerejas vermelhas.
     Ela chegou inesperadamente. Um cavaleiro trouxe o recado do chefe da estação pedindo a charrete para a visita que acabara de desembarcar.
     – É Olívia! – exclamou Madrinha. – É a prima! Alberto escreveu dizendo que ela viria, mas não disse quando, ficou de avisar. (...)
     – Como se já não bastasse esse menino que também chegou sem aviso...
     O menino era Marcelo. Tinha apenas dois anos mais do que eu mas era tão alto e parecia tão adulto com suas belas roupas de montaria, que tive vontade de entrar debaixo do armário quando o vi pela primeira vez. 
      – Um calor na viagem! – gemeu tia Olívia em meio de uma onda de perfumes e malas. – E quem é este rapazinho?
    – Pois este é o Marcelo, filho do Romeu – disse Madrinha. – Você não se lembra do Romeu? Primo-irmão do Alberto...
     Tia Olívia desprendeu do chapeuzinho preto dois grandes alfinetes de pérola em formato de pera. O galho de cerejas estremeceu no vértice do decote da blusa transparente. Desabotoou o casaco. (...)
     Tia Olívia ajeitou com as mãos em concha o farto coque preso na nuca. Umedeceu os lábios com a ponta da língua. (...)
      Aproximei-me fascinada. Nunca tinha visto ninguém como tia Olívia, ninguém com aqueles olhos pintados de verde e com aquele decote assim fundo.
       – É de cera? – perguntei tocando-lhe uma das cerejas.
      Ela acariciou-me a cabeça com um gesto distraído. Senti bem de perto seu perfume.
      – Acho que sim, querida. Por quê? Você nunca viu cerejas?
     – Só na folhinha.
    Ela teve um risinho cascateante. No rosto muito branco a boca parecia um largo talho aberto, com o mesmo brilho das cerejas.
     – Na Europa são tão carnudas, tão frescas. (...)

A
Porque os textos narrativos podem “embaralhar” as ideias, pois o que importa não é a clareza, diferentemente do que ocorre com outros gêneros como o argumentativo, por exemplo.
B
Como as ações do texto não se desenvolvem “em linha reta”, o recurso de repetir determinadas situações desperta maior interesse do leitor, levando-o a ler o texto todo.
C
Percebe-se, através desse recurso que Olívia cresceu e, ao tornar-se adulta, elaborou uma resposta mais ousada, que não tivera coragem de dar quando ainda era uma criança.
D
Porque é como se a narradora corrigisse a tia, muito depois de ocorrida a situação, num momento de recordação do passado, que ocorre no início do texto.

Gabarito comentado

M
Mariana AlmeidaMonitor do Qconcursos

Tema central da questão: Interpretação de texto, com foco em estrutura temporal da narrativa, especialmente o uso da anacronia ― ou seja, o recurso de apresentar eventos fora da ordem cronológica natural, como reminiscências e lembranças do passado.

Justificativa da alternativa correta (D):

A alternativa D é a correta pois descreve bem o funcionamento do texto narrativo com uso de anacronia. A narradora adulta, ao recordar o passado, antecipa uma resposta que só faria sentido depois da pergunta ser feita no tempo original da história. Trata-se de um "ajuste" posterior, marcando a presença da memória e do ponto de vista do narrador, comum em textos literários segundo a análise de Evanildo Bechara: “O narrador pode manipular o tempo narrativo conforme suas necessidades, tornando a cronologia mais flexível” (Moderna Gramática Portuguesa).

Além disso, como destaca Gérard Genette, anacronias (analepse/flashback ou prolepse/antecipação) são recursos legítimos para organizar o tempo numa narrativa e aprofundar o olhar subjetivo do narrador, especialmente em relatos de memória.

Análise das alternativas incorretas:

A) Incorreta. Afirma que os textos narrativos “embaralham” as ideias e que não há clareza, o que não é verdade. Narrativas literárias organizam o tempo de acordo com o efeito desejado, sem confundir o leitor, mas enriquecendo a interpretação. Não se trata de ser menos claro que o texto argumentativo.

B) Incorreta. O texto não utiliza a reprise de situações apenas para despertar interesse no leitor. O foco é a lembrança e reorganização do passado pelo olhar maduro. Trata-se de construção narrativa, não de “repetição para prender atenção”.

C) Incorreta. O enunciado mistura personagens e fatos: quem narra não é Olívia, mas alguém que se dirige a Olívia, recordando. Não se trata de uma resposta mais ousada da própria Olívia.

Dica de prova: Sempre que encontrar uma resposta antecipada no texto, procure identificar se o narrador está relembrando e revisitando o passado. Na dúvida, busque por marcas de tempo verbal e expressões que revelem memórias (Ex.: “Hoje vejo que...”, “Naquela época...”).

Para levar para outras questões: O domínio da sequência narrativa e as estratégias de anacronia ajudam a entender melhor relatos pessoais, crônicas e muitos contos, ampliando sua capacidade de interpretação crítica.

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