O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez:
sua história poderia ser contada e descontada não fosse
seu guia, Gigito Efraim. A mão de Gigito conduziu o
desvistado por tempos e idades. Aquela mão era
repartidamente comum, extensão de um no outro,
siamensal. E assim era quase de nascença. Memória de
Estrelinho tinha cinco dedos e eram os de Gigito postos,
em aperto, na sua própria mão.
O cego, curioso, queria saber de tudo. Ele não
fazia cerimônia no viver. O sempre lhe era pouco e tudo
insuficiente. Dizia, deste modo: - Tenho que viver já, senão esqueço-me.
Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia.
O mundo que ele minuciava eram fantasias e
rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua que
papaeira. O cego enchia a boca de águas: - Que maravilhação esse mundo. Me conte tudo,
Gigito!
A mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira.
Gigito Efraim estava como nunca esteve S. Tomé: via
para não crer. O condutor falava pela ponta dos dedos.
Desfolhava o universo, aberto em folhas. A ideação dele
era tal que mesmo o cego, por vezes, acreditava ver.
(...)
COUTO, Mia. “O cego Estrelinho”. In: Estórias Abensonhadas.
Portugal; Editotial caminho, 1994, pp.29 -30.
No excerto acima, retirado do conto “O cego
Estrelinho”, é possível afirmar que Mia Couto utiliza de
um procedimento estilístico para a construção narrativa,
o da intertextualidade, que consiste no estabelecimento
de relação com um texto já existente. Assim, Mia Couto
traz um diálogo com um ditado popular “Ver para crer”,
atribuído a São Tomé, um dos discípulos de Jesus Cristo
na tradição cristã, que trazia como prerrogativa acreditar
somente em algo concreto, naquilo que poderia ser visto
ou constatado por ele. No entanto, Mia Couto traz nesse
conto um sentido invertido desse ditado popular, ao
invés da afirmação “Ver para crer”. Após sabermos que
Gigito descrevia um mundo que não existia para o cego
Estrelinho, o narrador afirma que “Gigito Efraim estava
como nunca esteve S. Tomé: via para não crer”.
Diante de tal constatação, considera-se que
Gabarito comentado
Tema central: Interpretação de texto, com foco em intertextualidade, figuras de linguagem (paradoxo) e análise de visões contrastantes na narrativa.
Mia Couto, ao construir o conto, utiliza a intertextualidade ao inverter o sentido do ditado “ver para crer”. Enquanto tradicionalmente se associa a São Tomé a crença somente no que se vê, o autor propõe, paradoxalmente: “via para não crer”. Nesse contexto, a questão exige do candidato a capacidade de interpretar adequadamente o jogo de sentidos proposto pelo texto, especialmente no confronto entre realidade e fantasia.
Justificativa da alternativa correta (C): A alternativa C afirma que há dois tipos de visão: uma realista (dura realidade vivida pelos personagens, como a cegueira e a miséria, trazidas sob uma perspectiva objetiva) e uma inventiva (mundo idealizado e fantasioso, criado por Gigito ao descrever para Estrelinho o que vê). Essa dualidade é central na interpretação do texto, pois reflete a oposição entre o “mundo real” e “o mundo reinventado”.
Essa leitura está de acordo com o conceito de antítese e paradoxo (Cunha & Cintra), já que as visões se opõem, mas coexistem como camadas interpretativas.
Análise das alternativas incorretas:
A) Incorreta. A inversão do ditado não é uma ruptura radical, mas um diálogo intertextual (Koch), enriquecendo a tradição e não negando-a.
B) Errada ao afirmar que há “radicalização” da forma do conto; Mia Couto inova sem romper completamente.
D) Errada porque o narrador avalia o papel de Gigito (“via para não crer”), e não o fingimento de Estrelinho.
E) Equivocada. O texto não faz crítica negativa ao “escapismo”, mas explora a necessidade do imaginário diante da adversidade.
Estratégia para provas: Atenção a palavras-chave, inversões de sentido e relações de oposição (realidade x fantasia). Ler atentamente declarações absolutas ou críticas generalizadoras, pois frequentemente estão presentes em alternativas incorretas.
Referências: Koch (coesão e intertextualidade), Bechara (interpretação de texto), Cunha & Cintra (figuras de linguagem).
Resposta correta: C
Gostou do comentário? Deixe sua avaliação aqui embaixo!






