Parado, com a colher suspensa sobre a bancada de aço inox, o sujeito atravancava minha
passagem. Ia enfiá-la no pote de ervilhas, arremeteu, pousou-a na bandeja de beterrabas, levantou
uma rodela, soltou-a, duas gotas vermelhas respingaram no talo de uma couve-flor. Fosse mais
para trás, lá pela travessa do agrião, eu poderia ultrapassá-lo e chegar aos molhos a tempo de
colocar azeite e vinagre antes que ele se aproximasse, mas da beterraba aos temperos é um passo
e então seria eu a atrapalhar sua cadência. (Segundo a etiqueta não escrita dos restaurantes por
quilo, a ultrapassagem só é permitida se não for reduzir a velocidade do ultrapassado – o que seria
equivalente a furar a fila).
Tudo é movimento, dizia Heráclito; o mundo gira, a lusitana roda, anunciava a televisão: só
eu não me mexia, preso diante da cumbuca de grãos de bico com atum. Fiquei irritado. Aquele
homem hesitante estava travando o fluxo de minha vida, dali para frente todos os eventos estariam
quinze segundos atrasados: da entrega desta crônica ao meu último suspiro.
PRATA, A. A zona do agrião. Estadão, 23 dez. 2008. Disponível em: <https://goo.gl/oE4E42>. Acesso em: 30 mar.
2018.
Narrada na primeira pessoa do singular, a crônica parte de um evento corriqueiro na fila de
um restaurante por quilo para elaborar uma reflexão sobre a passagem do tempo. No texto, a função
metalinguística da linguagem é evidenciada no fragmento
Parado, com a colher suspensa sobre a bancada de aço inox, o sujeito atravancava minha passagem. Ia enfiá-la no pote de ervilhas, arremeteu, pousou-a na bandeja de beterrabas, levantou uma rodela, soltou-a, duas gotas vermelhas respingaram no talo de uma couve-flor. Fosse mais para trás, lá pela travessa do agrião, eu poderia ultrapassá-lo e chegar aos molhos a tempo de colocar azeite e vinagre antes que ele se aproximasse, mas da beterraba aos temperos é um passo e então seria eu a atrapalhar sua cadência. (Segundo a etiqueta não escrita dos restaurantes por quilo, a ultrapassagem só é permitida se não for reduzir a velocidade do ultrapassado – o que seria equivalente a furar a fila).
Tudo é movimento, dizia Heráclito; o mundo gira, a lusitana roda, anunciava a televisão: só eu não me mexia, preso diante da cumbuca de grãos de bico com atum. Fiquei irritado. Aquele homem hesitante estava travando o fluxo de minha vida, dali para frente todos os eventos estariam quinze segundos atrasados: da entrega desta crônica ao meu último suspiro.
PRATA, A. A zona do agrião. Estadão, 23 dez. 2008. Disponível em: <https://goo.gl/oE4E42>
Gabarito comentado
Tema central: A questão aborda interpretação de texto com foco na função metalinguística da linguagem. Essa função acontece quando o texto faz referência a si próprio ou utiliza a linguagem para explicar a própria linguagem, conforme descrito por Jakobson e nas principais gramáticas (Bechara, Cunha & Cintra).
Justificativa da alternativa correta (B):
A alternativa B – “dali para frente todos os eventos estariam quinze segundos atrasados: da entrega desta crônica ao meu último suspiro.” – evidencia a função metalinguística, pois o narrador cita explicitamente o próprio texto em que escreve (“entrega desta crônica”). Pelo conceito gramatical, isso é utilizar o código para falar do próprio código – ou, como ensina a gramática de Bechara, é a manifestação da linguagem voltada para ela mesma, característica marcante dessa função.
Análise das alternativas incorretas:
A) Refere-se a uma norma social de comportamento (“etiqueta não escrita dos restaurantes por quilo”), não à linguagem sobre si mesma. Ausência de metalinguagem.
C) Descreve a ação e cenário (“o sujeito atravancava minha passagem”), tratando de acontecimentos, não do texto, não cabendo como metalinguagem.
D) Traz alusão filosófica e cultural (“Tudo é movimento, dizia Heráclito...”), sem nenhuma reflexão sobre a produção textual, estrutura ou linguagem empregada.
Como identificar em provas: Atenção para referências explícitas à escrita ou comentários do autor sobre o texto (“esta crônica”, “este texto”, “escrevo agora”, etc.), que são indícios diretos da função metalinguística. Cuidado especialmente com alternativas que apresentam regras de convivência ou descrições objetivas, pois não indicam metalinguagem e funcionam como pegadinhas.
Regra de ouro: Função metalinguística ocorre sempre que há reflexão ou explicação sobre o próprio código usado (“linguagem falando sobre linguagem”), especialmente no contexto da produção do texto.
Referências: Jakobson, Roman; Bechara, Evanildo; Cunha & Cintra – Gramáticas de referência para estudar funções da linguagem.
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