Uma das características de uma narrativa de memória é a constante
avaliação que o narrador realiza a partir das lembranças evocadas do
passado. Tal característica se verifica em:
Texto para a questão:
É uma das recordações mais desagradáveis que me fi caram: sujeito magro, de olho duro, aspecto tenebroso. Não me lembro de o ter visto sorrir.
A voz áspera, modos sacudidos, ranzinza, impertinente, Fernando era assim. E junto a isso qualquer coisa de frio, úmido, viscoso, que me dava a
absurda impressão de uma lesma vertebrada e muito rápida. [...]
Essas noções me chegavam lentas e incompletas. Novo ainda, eu não
entendia certas coisas. Entretanto, aquele indivíduo me causava arrepios.
Sempre foi demasiado grosseiro comigo, e isto me levou a aceitar sem
exame os boatos que circulavam a respeito dele. Acostumei-me a julgálo um bicho perigoso. E lendo no dicionário encarnado, onde existiam
bandeiras de todos os países e retratos de personagens vultosas, que Nero
tinha sido o maior dos monstros, duvidei. Maior que Fernando? A afirmação do livro me embaraçava. Como seria possível medir por dentro as
pessoas? E senti pena de Nero, que nunca me havia feito mal. Fernando
me atormentava e era péssimo. Talvez não fosse o pior monstro da Terra, mas era safadíssimo. O rosto de caneco amassado, a fala dura e impertinente, os resmungos, o olho oblíquo e cheio de fel, um jeito impudente e
desgostoso, um ronco asmático findo em sopro, tudo me dava a certeza
de que Fernando encerrava muito veneno. Se aquele sopro, rumor de
caldeira, se transformava em palavras, saíam dali brutalidades. O sujeito se
tornou para mim um símbolo — e pendurei nele todas as misérias.
(RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Mediafashion, 2008. pp. 185-6.)
Gabarito comentado
Tema central: Interpretação de texto com foco em narrativa de memória.
A questão exige reconhecer características da narrativa de memória, principalmente a avaliação que o narrador faz do passado. Nas narrativas desse gênero, o narrador revisita fatos e atribui-lhes significados, julgando situações ou personagens à luz de suas emoções e maturidade atual (Bechara; Cunha & Cintra).
Justificativa da alternativa correta (D):
“Talvez não fosse o pior monstro da Terra, mas era safadíssimo.”
Aqui, o narrador reflete sobre sua lembrança de Fernando, reconhecendo que talvez sua impressão não seja universal (por isso ‘talvez’), mas faz um julgamento direto (“safadíssimo”), típico de quem reavalia o passado, mostrando postura subjetiva e avaliativa. É um comentário pessoal, indo além da simples descrição — exatamente o que a questão demanda. Segundo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa), a narrativa memorialística se revela por essas avaliações do eu-narrador.
Análise das alternativas incorretas:
A) “sujeito magro, de olho duro, aspecto tenebroso”;
Descrição objetiva da aparência, sem traços de análise subjetiva sobre a lembrança.
B) “Não me lembro de o ter visto sorrir”;
Constatação de fato, sem avaliação ou julgamento; apenas memória factual.
C) “aquele indivíduo me causava arrepios”;
Expressa reação emocional, mas não há reflexão ou juízo mais elaborado, apenas sentimento imediato.
E) “Se aquele sopro, rumor de caldeira, se transformava em palavras, saíam dali brutalidades.”
Metáfora intensifica a descrição, mas foca em caracterização, não em avaliação subjetiva do passado.
Dica do especialista: Ao encontrar palavras como “talvez”, “acho”, “considero” ou juízos de valor (“safadíssimo”, “apavorante”), identifique a avaliação memorialística — elemento-chave das provas de interpretação!
Referências: Bechara (Moderna Gramática Portuguesa). Cunha & Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo).
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