Infância, de Graciliano Ramos, é considerado um livro de memórias, ou
seja, o narrador conta, literariamente, ao leitor as recordações de um
período de sua vida. Sabendo disso, assinale a alternativa que apresente todas as afirmações corretas:
I. O texto pode ser considerado autobiográfico, o que pode ser verificado pelo uso de primeira pessoa do singular (“E senti pena de
Nero”);
II. Há, no texto, a convivência de dois tempos o do enunciador, ou seja,
o momento em que o narrador conta a história aos leitores, e o do
enunciado, o tempo em que os acontecimentos narrados ocorreram;
III. A subjetividade do narrador impregna o texto a partir de imagens
que simbolizam tal fato da infância: “qualquer coisa de frio, úmido,
viscoso, que me dava a absurda impressão de uma lesma vertebrada
e muito rápida”;
IV. A variedade de características negativas ligadas ao personagem descrito amplifica o sentimento que o narrador parece ainda guardar
por Fernando.
Texto para a questão:
É uma das recordações mais desagradáveis que me fi caram: sujeito magro, de olho duro, aspecto tenebroso. Não me lembro de o ter visto sorrir.
A voz áspera, modos sacudidos, ranzinza, impertinente, Fernando era assim. E junto a isso qualquer coisa de frio, úmido, viscoso, que me dava a
absurda impressão de uma lesma vertebrada e muito rápida. [...]
Essas noções me chegavam lentas e incompletas. Novo ainda, eu não
entendia certas coisas. Entretanto, aquele indivíduo me causava arrepios.
Sempre foi demasiado grosseiro comigo, e isto me levou a aceitar sem
exame os boatos que circulavam a respeito dele. Acostumei-me a julgálo um bicho perigoso. E lendo no dicionário encarnado, onde existiam
bandeiras de todos os países e retratos de personagens vultosas, que Nero
tinha sido o maior dos monstros, duvidei. Maior que Fernando? A afirmação do livro me embaraçava. Como seria possível medir por dentro as
pessoas? E senti pena de Nero, que nunca me havia feito mal. Fernando
me atormentava e era péssimo. Talvez não fosse o pior monstro da Terra, mas era safadíssimo. O rosto de caneco amassado, a fala dura e impertinente, os resmungos, o olho oblíquo e cheio de fel, um jeito impudente e
desgostoso, um ronco asmático findo em sopro, tudo me dava a certeza
de que Fernando encerrava muito veneno. Se aquele sopro, rumor de
caldeira, se transformava em palavras, saíam dali brutalidades. O sujeito se
tornou para mim um símbolo — e pendurei nele todas as misérias.
(RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Mediafashion, 2008. pp. 185-6.)
Gabarito comentado
Tema central: Esta questão envolve interpretação de texto literário autobiográfico, exigindo do candidato compreensão sobre narrativa em primeira pessoa, subjetividade e análise temporal.
Por que a alternativa correta é a letra E? Todas as afirmações (I, II, III, IV) são coerentes com o texto e a teoria literária/linguística aplicada ao gênero autobiográfico.
I. O texto é autobiográfico, comprovado pelo uso da primeira pessoa do singular (“E senti pena de Nero”). Segundo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa), a enunciação em primeira pessoa é um indício fundamental do relato de experiências pessoais.
II. O texto apresenta dois tempos: o do narrador adulto que recorda e o da infância narrada, característica da autobiografia (conforme Lejeune e Barros). Fica evidente na distinção entre “aquelas noções me chegavam lentas” (passado vivido) e o julgamento presente.
III. A subjetividade está em imagens como “a absurda impressão de uma lesma vertebrada e muito rápida” — metáfora que expressa a experiência pessoal do narrador, aspecto essencial em textos literários autobiográficos.
IV. Ao somar características negativas de Fernando (ex: “olho duro, aspecto tenebroso”), o narrador amplifica e reforça a aversão guardada – efeito descrito nos estudos de análise da subjetividade textual.
Justificativa: A interpretação correta exige atenção aos marcas textuais (pessoa do discurso, figuras de linguagem), à coexistência temporal (passado e presente) e à avaliação subjetiva do narrador, levando à conclusão de que todas as afirmações estão corretas.
Análise das alternativas incorretas: Se o aluno marcar uma alternativa com apenas duas ou três afirmações (A, B, C, D), estará desconsiderando elementos objetivos do texto: sempre que houver identidade entre narrador e protagonista e descrição subjetiva, as hipóteses precisam ser revistas à luz da narrativa autobiográfica, conforme Celso Cunha e Cintra apontam sobre gêneros textuais.
Dica estratégica: Fique atento a expressões como “eu”, metáforas e descrição de sentimentos/sensações. Isso é indício de subjetividade! Não caia no erro de generalizar sem conferir se todos os elementos realmente aparecem no texto.
Alternativa correta: E) I, II, III e IV.
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