Mia Couto, escritor moçambicano, é um mestre das
palavras. Nesse texto, ele aproxima a linguagem matemática das relações humanas e do cotidiano do personagem
e, com isso:
Os infelizes cálculos da felicidade (fragmento),
Mia Couto.
O homem da história é chamado Julio Novesfora. Noutras falas o mestre Novesfora. Homem bastante matemático, vivendo na quantidade exata, morando sempre no
acertado lugar. O mundo, para ele, estava posto em equação de infinito grau. Qualquer situação lhe algebrava o
pensamento. Integrais, derivadas, matrizes para tudo existia a devida fórmula. A maior parte das vezes mesmo ele
nem incomodava os neurónios*: – É conta que se faz sem cabeça. Doseava o coração em aplicações regradas, reduzida
a paixão ao seu equivalente numérico. Amores, mulheres, filhos: tudo isso era hipótese nula. O sentimento, dizia
ele, não tem logaritmo. Por isso, nem se justifica a sua
equação. Desde menino se abstivera de afetos. Do ponto
de vista da álgebra, dizia, a ternura é um absurdo. Como o
zero negativo. Vocês vejam, dizia ele aos alunos: a erva
não se enerva, mesmo sabendo-se acabada em ruminagem
de boi. E a cobra morde sem ódio. É só o justo praticar da
dentadura injetável dela. Na natureza não se concebe sentimento. Assim, a vida prosseguia e Julio Novesfora era
nela um aguarda-factos*. Certa vez, porém, o mestre se
apaixonou por uma aluna, menina de incorreta idade. Toda
a gente advertia: essa menina é mais que nova, não dá
para si*.
– Faça as contas mestre. Mas o mestre já perdera o cálculo. Desvalessem os
razoáveis conselhos. Ainda mais grave: ele perdia o matemático tino. Já nem sabia o abecedário dos números. Seu
pensamento perdia as limpezas da lógica. Dizia coisas sem
pés. Parecia, naquele caso, se confirmar o lema: quanto
mais sexo menos nexo. Agora, a razão vinha tarde de mais*.
O mestre já tinha traçado a hipotenusa à menina. Em folgas e folguedos, Julio Novesfora se afastava dos rigores
da geometria. O oito deitado é um infinito. E, assim, o
professor ataratonto, relembrava:
– A paixão é o mundo a dividir por zero.
*grafia usada em Moçambique
Gabarito comentado
Tema central da questão: Interpretação de texto literário, com foco em linguagem literária, sentido conotativo e metáfora. A questão avalia sua capacidade de perceber como a mistura de linguagens e figuras de linguagem constrói sentidos na narrativa.
Justificativa da alternativa correta (C):
No texto, Mia Couto aproxima termos matemáticos da vida emocional do personagem. Expressões como “reduzida a paixão ao seu equivalente numérico” e “A paixão é o mundo a dividir por zero” demonstram o uso de linguagem literária e matemática de modo inovador, criando imagens metafóricas. Segundo autores como Bechara, a linguagem literária permite romper limites do literal, trabalhando com sentidos figurados (Gramática Escolar da Língua Portuguesa). Assim, a alternativa C é a correta, pois destaca que o texto integra as duas linguagens para produzir sentido.
Análise das alternativas incorretas:
A) Ao afirmar que o texto chama atenção para a frieza dos matemáticos, comete um erro de interpretação. O texto não generaliza comportamentos, mas utiliza a Matemática como metáfora para tratar de sentimentos humanos.
B) Diz que Mia Couto não se preocupa com lógica. Isso é falso, pois o texto se vale da licença poética e da linguagem literária para criar imagens expressivas. A expressão “equação de infinito grau” é justamente uma metáfora, não um erro.
D) O texto usa linguagem metafórica, sim, mas não há conselho explícito para que as pessoas sejam menos “exatas”; essa é uma interpretação subjetiva e não fundamentada diretamente no texto.
Elementos essenciais e estratégias:
Observe sempre palavras e expressões-chave que indicam uso metafórico e mistura de estilos – nesse caso, palavras do campo da matemática associadas a sentimentos.
Dica de prova: quando a banca citar o uso de diferentes linguagens (matemática, científica, poética) e a criação de sentido, pense na função conotativa do texto. Atenção também às pegadinhas que apresentam interpretações muito literais ou subjetivas não sustentadas no fragmento!
Resumo: A alternativa C é a correta porque evidencia o uso criativo e metafórico da linguagem matemática em contexto literário, enriquecendo o texto e demonstrando a possibilidade de múltiplos sentidos.
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