Costuma-se considerar que O Ateneu, de Raul Pompeia, embora tenha como subtítulo “Crônica
de saudades”, pertence à modalidade literária conhecida como romance de formação, cujo
modelo ou paradigma é a narrativa do percurso de aprendizagem de um jovem, no qual ele
forma seu caráter, supera os problemas encontrados e prepara sua inserção harmônica na
sociedade.
Admitindo-se esse paradigma, a reflexão sobre o tempo apresentada pelo narrador na abertura
do livro, aqui reproduzida, indica que O Ateneu irá se configurar como um romance de formação
“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.”
Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança
educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico; diferente do que se
encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental,
com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento,
têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto,
com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto,
não nos houvesse perseguido outrora, e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos
ultrajam. Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a
saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas
as datas.
Raul Pompeia, O Ateneu.
Gabarito comentado
Tema central da questão: Interpretação de texto e reconhecimento de tipos de romance (gêneros literários), com foco no conceito de romance de formação negativo.
A questão aborda como interpretar a reflexão sobre o tempo feita pelo narrador na abertura de “O Ateneu”, relacionando-a à tradição literária do romance de formação (Bildungsroman). Na tradição clássica, esse romance narra a trajetória de amadurecimento do jovem, resultando, ao final, em sua integração social bem-sucedida. Ocorre que, quando a trajetória do personagem é marcada por desilusões, críticas sociais e frustrações, falamos em romance de formação negativo.
Justificativa da alternativa correta:
A) negativo
É a resposta correta porque, já no início do texto, o narrador evidencia uma visão desencantada da vida. Ele comenta que a “verdade deste aviso” é a perda precoce das “ilusões de criança”, que o mundo externo é “tão diferente” do ambiente protegido do lar, e que a memória dos “felizes tempos” da infância não passa de um “eufemismo”. Essa perspectiva sugere um amadurecimento marcado por desapontamentos, típica do romance de formação negativo.
Análise das alternativas incorretas:
- B) historicista — Incorreta. Apesar de a obra dialogar com o contexto histórico do século XIX, o foco é a experiência subjetiva do narrador, e não uma interpretação da história em si.
- C) tropical — Errada. Expressão inadequada ao campo teórico dos gêneros literários. Não há menção a clima ou paisagem que justifique essa classificação.
- D) doutrinário — Incorreta. O romance não busca impor doutrina ou norma; ele propõe uma reflexão crítica, não doutrinadora.
- E) ortodoxo — Inadequada. Um romance “ortodoxo” seguiria o padrão do Bildungsroman tradicional, com amadurecimento positivo, o que não ocorre aqui.
Estratégia de Resolução:
Fique atento a indícios de desencanto, ironia ou percepção crítica do narrador. Palavras como “eufemismo”, “desilusão”, “ilusões desfeitas” são sinais de construção negativa da experiência. Ao acostumar-se a identificar tais marcas, você ganha segurança em leituras interpretativas.
Referências utilizadas: Marcus Vinicius Mazzari e Jorge Alves Santana analisam que, em obras como “O Ateneu”, há inversão do modelo positivo de formação. Isso complementa o raciocínio cobrado pela banca.
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