Nesse texto de Clarice Lispector, o comportamento do narrador opõe-se,
sobretudo, ao do narrador-padrão, de caráter
Depois – ignora-se por quê – tinham vindo para o Rio, o inacreditável Rio
de Janeiro, a tia lhe arranjara emprego, finalmente morrera e ela*, agora
sozinha, morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro moças
balconistas das Lojas Americanas.
O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre entre
as prostitutas que serviam a marinheiros, depósitos de carvão e de cimento em
pó, não longe do cais do porto. O cais imundo dava-lhe saudade do futuro. (O
que é que há? Pois estou como que ouvindo acordes de piano alegre – será isto
o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro esplendoroso? Estou
contente com essa possibilidade e farei tudo para que esta se torne real.)
Rua do Acre. Mas que lugar. Os gordos ratos da rua do Acre. Lá é que não
piso pois tenho terror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço de vida
imunda.
Uma vez por outra tinha a sorte de ouvir de madrugada um galo cantar a
vida e ela se lembrava nostálgica do sertão. Onde caberia um galo a cocoricar
naquelas paragens ressequidas de artigos por atacado de exportação e
importação? (Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá
de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque
ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o
papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia.
Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta.
Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura
bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim.)
Clarice Lispector, A hora da estrela.
*Macabéa.
Depois – ignora-se por quê – tinham vindo para o Rio, o inacreditável Rio de Janeiro, a tia lhe arranjara emprego, finalmente morrera e ela*, agora sozinha, morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro moças balconistas das Lojas Americanas.
O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre entre as prostitutas que serviam a marinheiros, depósitos de carvão e de cimento em pó, não longe do cais do porto. O cais imundo dava-lhe saudade do futuro. (O que é que há? Pois estou como que ouvindo acordes de piano alegre – será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro esplendoroso? Estou contente com essa possibilidade e farei tudo para que esta se torne real.)
Rua do Acre. Mas que lugar. Os gordos ratos da rua do Acre. Lá é que não piso pois tenho terror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço de vida imunda.
Uma vez por outra tinha a sorte de ouvir de madrugada um galo cantar a vida e ela se lembrava nostálgica do sertão. Onde caberia um galo a cocoricar naquelas paragens ressequidas de artigos por atacado de exportação e importação? (Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta. Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim.)
Clarice Lispector, A hora da estrela.
*Macabéa.