Em relação à Justiça, a posição do narrador é de
Aquele acreditava na lei. Funcionário do IAPC [Instituto
de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários], sabia de
cor a Lei Orgânica da Previdência. Chegava mesmo a ser
consultado pelos colegas sempre que surgia alguma dúvida
quanto à aplicação desse ou daquele princípio. Eis que um
dia nasce-lhe um filho e ele, cônscio de seus direitos, requer
da Previdência o auxílio-natalidade. Prepara o requerimento,
junta uma cópia da certidão de nascimento da criança e dá
entrada no processo. Estava dentro da lei, mas já na entrada
a coisa enguiçou.
– Não podemos receber o requerimento sem o atestado do médico que assistiu a parturiente.
– A lei não exige isso – replicou ele.
– Mas o chefe exige. Tem havido abusos.
Estava montado o angu. O rapaz foi até o chefe, que se negou a receber o requerimento.
– Vou aos jornais – disse-me o crédulo. – Eles têm de receber o requerimento, como manda a lei.
Tentei aconselhá-lo: a justiça é cega e tarda, juntasse o tal atestado médico, era mais simples.
– Não junto. A lei não me obriga a isso. Vou aos jornais.
Foi aos jornais. Aliás, foi a um só, que deu a notícia num canto de página, minúscula. Ninguém leu, mas ele fez a notícia chegar até o chefe que, enfurecido, resolveu processá-lo: a lei proíbe que os funcionários levem para os jornais assuntos internos da repartição.
– Agora a lei está contra você, não?
– Não. A lei está comigo.
Estava ou não estava, o certo é que o processo foi até a Procuradoria e saiu dali com o seguinte despacho: suspenda- -se o indisciplinado.
Era de ver-se a cara de meu amigo em face dessa decisão. Estava pálido e abatido, comentando a sua perplexidade. Mas não desistiu:
– Vou recorrer.
Deve ter recorrido. Ainda o vi várias vezes contando aos colegas o andamento do processo, meses depois. Parece que já nem se lembra do auxílio-natalidade – a origem de tudo – e brigará até o fim da vida, alheio a um aforismo que, por ser brasileiro, inventei: “Quem acredita na lei, esta lhe cai em cima.”
(O melhor da crônica brasileira, 2013.)
Aquele acreditava na lei. Funcionário do IAPC [Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários], sabia de cor a Lei Orgânica da Previdência. Chegava mesmo a ser consultado pelos colegas sempre que surgia alguma dúvida quanto à aplicação desse ou daquele princípio. Eis que um dia nasce-lhe um filho e ele, cônscio de seus direitos, requer da Previdência o auxílio-natalidade. Prepara o requerimento, junta uma cópia da certidão de nascimento da criança e dá entrada no processo. Estava dentro da lei, mas já na entrada a coisa enguiçou.
– Não podemos receber o requerimento sem o atestado do médico que assistiu a parturiente.
– A lei não exige isso – replicou ele.
– Mas o chefe exige. Tem havido abusos.
Estava montado o angu. O rapaz foi até o chefe, que se negou a receber o requerimento.
– Vou aos jornais – disse-me o crédulo. – Eles têm de receber o requerimento, como manda a lei.
Tentei aconselhá-lo: a justiça é cega e tarda, juntasse o tal atestado médico, era mais simples.
– Não junto. A lei não me obriga a isso. Vou aos jornais.
Foi aos jornais. Aliás, foi a um só, que deu a notícia num canto de página, minúscula. Ninguém leu, mas ele fez a notícia chegar até o chefe que, enfurecido, resolveu processá-lo: a lei proíbe que os funcionários levem para os jornais assuntos internos da repartição.
– Agora a lei está contra você, não?
– Não. A lei está comigo.
Estava ou não estava, o certo é que o processo foi até a Procuradoria e saiu dali com o seguinte despacho: suspenda- -se o indisciplinado.
Era de ver-se a cara de meu amigo em face dessa decisão. Estava pálido e abatido, comentando a sua perplexidade. Mas não desistiu:
– Vou recorrer.
Deve ter recorrido. Ainda o vi várias vezes contando aos colegas o andamento do processo, meses depois. Parece que já nem se lembra do auxílio-natalidade – a origem de tudo – e brigará até o fim da vida, alheio a um aforismo que, por ser brasileiro, inventei: “Quem acredita na lei, esta lhe cai em cima.”
(O melhor da crônica brasileira, 2013.)
Gabarito comentado
Tema central da questão: Interpretação de texto, especificamente a identificação da postura do narrador frente à Justiça.
Para esse tipo de questão de vestibular, cabe ler com atenção o texto, buscando não apenas informações literais, mas implicações e tons de opinião – indicados por expressões, ironias e comentários finais do narrador.
Por que a alternativa E) incredulidade é correta?
O narrador, ao final, revela sua perspectiva ao escrever: “Quem acredita na lei, esta lhe cai em cima.” Esse comentário demonstra claro ceticismo e descrença na Justiça, indicando que ele não acredita em sua eficácia ou imparcialidade. É exatamente o conceito de incredulidade, definido em gramáticas normativas (como Bechara) como “falta de fé, dificuldade em aceitar como verdade”. O tom irônico reforça essa postura, mostrando experiência ou desencanto com o sistema.
Análise das alternativas incorretas:
A) Indiferença: Incorreta. O narrador expressa opiniões e críticas, demonstrando envolvimento emocional e intelectual. Indiferente seria o narrador que não se importasse com o desfecho.
B) Ingenuidade: Incorreta. O narrador adota postura contrária à ingenuidade; ele vê com olhos experientes e até céticos a situação, ironizando que “quem acredita na lei, esta lhe cai em cima”.
C) Confiança: Incorreta. Em nenhum momento o narrador manifesta confiar na Justiça. O narrador acredita que quem confia nela, acaba prejudicado.
D) Perplexidade: Incorreta. Embora o personagem (amigo do narrador) se mostre perplexo e abatido, o narrador já antevê a dificuldade. Assim, a perplexidade não é predominante em sua postura diante da Justiça.
Estratégia de resolução:
Destaque palavras que traduzem sentimentos do narrador, observe expressões irônicas e reflita se a atitude dele é de fé ou de descrença. Pergunte-se: pelo tom do desfecho, ele crê ou desconfia do sistema?
Resumo da regra: Na interpretação textual, a análise das palavras e do tom é essencial para captar a verdadeira posição ou opinião do narrador (Bechara; Cunha & Cintra).
Portanto, a alternativa correta é E) incredulidade, pois traduz a descrença e o desencanto do narrador diante da Justiça.
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