Em “Acho que é claramente esse o caso. Ou, pelo menos, é esse o claro enigma”, a expressão “claro enigma” é exemplo de:
Texto para a questão:
Complexo de d. Sebastião
Neymar expia a culpa pela derrota, mas as mudanças em
nosso futebol não podem mais esperar, diz autor
Entrevista de Ivan Marsiglia com José Miguel Wisnik
ESTADÃO - A palavra mais usada nas avaliações da derrota da seleção brasileira para a alemã, por 7 a 1, na Copa de 2014, foi “apagão”. Concorda com
ela?
WISNIK - Prefiro “implosão”. “Apagão” sugere uma falha de energia, um acidente de percurso, um lapso momentâneo. A comissão técnica, que se especializou na negação da evidência e da amplitude dos fatos, apega-se a essa
versão. Implosão, em vez disso, significa que uma estrutura cedeu a pressões
que ela não pôde mais suportar. Acho que é claramente esse o caso. Ou, pelo
menos, é esse o claro enigma.
ESTADÃO - Outra palavra muito repetida foi 'vexame', e de tal proporção
que teria redimido a histórica derrota na final de 1950 para o Uruguai.
WISNIK - “Vexame” dá uma inflexão moral a essa catástrofe futebolística, e
quem dirá que não se trata de uma tremenda humilhação esportiva? Mas
martelar a palavra soa como uma atualização do gozo regressivo da eleição
do bode expiatório. Não vejo mais essa necessidade de achar nos jogadores
o novo Barbosa e o novo Bigode, [jogadores culpabilizados pela derrota da
seleção na Copa de 1950] felizmente. O que não passou, no entanto, é a
permanente espera mágica pela vitória por goleada, independente da existência do adversário, combinada com a precária análise dos dados de
realidade. Esse desequilíbrio pesa sobre os jogadores. O grau da expectativa
futebolístico-messiânica é altíssimo, e não é de se espantar que o time
brasileiro entre em colapso em certas situações cruciais. Aliás, isso já aconceu pelo menos três vezes: lá no Maracanazo [Copa de 1950], agora no
Mineiraço, e na final de 1998 na França, depois da convulsão de Ronaldo.
Não me consta que outras seleções nacionais passem pela mesma síndrome.
Uma vez é um acidente. Duas, uma coincidência. Mas três é uma estrutura.
ESTADÃO - E de onde vem essa estrutura?
WISNIK - Essas partidas fazem pensar na batalha de Alcácer Quibir, em 1578,
durante a qual, segundo relatos, o jovem rei português d. Sebastião foi
tomado por estranha catatonia, antes de desaparecer no deserto e ter a sua
volta aguardada durante séculos pelos portugueses. [...] Em 1950, a equipe,
encolhida na partida final ante a enormidade do sucesso ou do fracasso
inéditos, esteve paralisada abaixo do seu tamanho. Em 2014, sucumbiu ante
a expectativa maciça, projetada sobre ela, por algo maior do que seu
tamanho. Nos dois casos, espelhados sintomaticamente em território brasileiro, há uma resistente dificuldade de dimensionar, isto é, de encarar o real,
que se junta à euforização publicitária, à cobertura da Rede Globo, aos
oportunismos políticos de todo tipo e ao baixo nível médio da cultura futebolística. Tudo continua muito parecido com o ambiente que cercou a final
de 1950, embora sem a mesma inocência trágica.
ESTADÃO - Você escreveu que 'a glorificação frenética de Neymar, justificada pela excepcionalidade do jogador, disfarça uma ansiedade compensatória de fundo'. Por quê?
WISNIK - Sem querer me repetir, [a figura de Neymar] ferida encarnava d.
Sebastião em batalha, desaparecido do campo, mas preservado misteriosamente da desgraça explícita e ocupando mais ainda o lugar mítico do Desejado.
(O Estado de S. Paulo, 12/07/2014. Disponível em http://m.estadao.com.br/ O Estado de S. Paulo
noticias/ali%C3%A1s,complexo-de-d-sebastiao,1527395,0.htm, acesso em 01/09/2014)
Texto para a questão:
Complexo de d. Sebastião
Neymar expia a culpa pela derrota, mas as mudanças em
nosso futebol não podem mais esperar, diz autor
Entrevista de Ivan Marsiglia com José Miguel Wisnik
ESTADÃO - A palavra mais usada nas avaliações da derrota da seleção brasileira para a alemã, por 7 a 1, na Copa de 2014, foi “apagão”. Concorda com ela?
WISNIK - Prefiro “implosão”. “Apagão” sugere uma falha de energia, um acidente de percurso, um lapso momentâneo. A comissão técnica, que se especializou na negação da evidência e da amplitude dos fatos, apega-se a essa versão. Implosão, em vez disso, significa que uma estrutura cedeu a pressões que ela não pôde mais suportar. Acho que é claramente esse o caso. Ou, pelo menos, é esse o claro enigma.
ESTADÃO - Outra palavra muito repetida foi 'vexame', e de tal proporção que teria redimido a histórica derrota na final de 1950 para o Uruguai.
WISNIK - “Vexame” dá uma inflexão moral a essa catástrofe futebolística, e quem dirá que não se trata de uma tremenda humilhação esportiva? Mas martelar a palavra soa como uma atualização do gozo regressivo da eleição do bode expiatório. Não vejo mais essa necessidade de achar nos jogadores o novo Barbosa e o novo Bigode, [jogadores culpabilizados pela derrota da seleção na Copa de 1950] felizmente. O que não passou, no entanto, é a permanente espera mágica pela vitória por goleada, independente da existência do adversário, combinada com a precária análise dos dados de realidade. Esse desequilíbrio pesa sobre os jogadores. O grau da expectativa futebolístico-messiânica é altíssimo, e não é de se espantar que o time brasileiro entre em colapso em certas situações cruciais. Aliás, isso já aconceu pelo menos três vezes: lá no Maracanazo [Copa de 1950], agora no Mineiraço, e na final de 1998 na França, depois da convulsão de Ronaldo. Não me consta que outras seleções nacionais passem pela mesma síndrome. Uma vez é um acidente. Duas, uma coincidência. Mas três é uma estrutura.
ESTADÃO - E de onde vem essa estrutura?
WISNIK - Essas partidas fazem pensar na batalha de Alcácer Quibir, em 1578, durante a qual, segundo relatos, o jovem rei português d. Sebastião foi tomado por estranha catatonia, antes de desaparecer no deserto e ter a sua volta aguardada durante séculos pelos portugueses. [...] Em 1950, a equipe, encolhida na partida final ante a enormidade do sucesso ou do fracasso inéditos, esteve paralisada abaixo do seu tamanho. Em 2014, sucumbiu ante a expectativa maciça, projetada sobre ela, por algo maior do que seu tamanho. Nos dois casos, espelhados sintomaticamente em território brasileiro, há uma resistente dificuldade de dimensionar, isto é, de encarar o real, que se junta à euforização publicitária, à cobertura da Rede Globo, aos oportunismos políticos de todo tipo e ao baixo nível médio da cultura futebolística. Tudo continua muito parecido com o ambiente que cercou a final de 1950, embora sem a mesma inocência trágica.
ESTADÃO - Você escreveu que 'a glorificação frenética de Neymar, justificada pela excepcionalidade do jogador, disfarça uma ansiedade compensatória de fundo'. Por quê?
WISNIK - Sem querer me repetir, [a figura de Neymar] ferida encarnava d. Sebastião em batalha, desaparecido do campo, mas preservado misteriosamente da desgraça explícita e ocupando mais ainda o lugar mítico do Desejado.
(O Estado de S. Paulo, 12/07/2014. Disponível em http://m.estadao.com.br/ O Estado de S. Paulo noticias/ali%C3%A1s,complexo-de-d-sebastiao,1527395,0.htm, acesso em 01/09/2014)
Gabarito comentado
Tema central da questão: Figuras de linguagem – Paradoxo
A questão trata de interpretação de texto tendo como foco as figuras de linguagem. O candidato precisa reconhecer no trecho o uso do paradoxo, conceito fundamental para leituras críticas e literárias.
O que resolve a questão? O paradoxo aparece quando duas ideias aparentemente opostas se combinam em uma mesma expressão, revelando um significado mais profundo. No trecho “é esse o claro enigma”, temos o adjetivo “claro” (algo evidente) contrastando com “enigma” (algo obscuro, difícil de entender). Pela norma-padrão, essa oposição inesperada de ideias numa mesma frase é recurso típico do paradoxo, como ensinam Bechara (Moderna Gramática Portuguesa) e Cunha & Cintra.
Comentário das alternativas:
A) Metáfora: Incorreta. Metáfora é quando há uma transferência de sentido por semelhança implícita (ex: “tempo é dinheiro”). Aqui não ocorre tal relação, mas sim oposição de ideias.
B) Aliteração: Incorreta. Aliteração é a repetição de sons consonantais ("o rato roeu"). Em “claro enigma”, não há repetição sonora.
C) Paradoxo: Correta. Como explicado, há contradição aparente entre “claro” e “enigma”, mas que ressalta um sentido especial, típico do paradoxo.
D) Anáfora: Incorreta. Anáfora é repetição de palavras no início de frases ou versos (“Se você gritasse, se você falasse...”). Não aparece no trecho.
E) Metonímia: Incorreta. Metonímia ocorre quando se troca um termo por outro com ligação lógica (“ler Machado de Assis” no lugar de “ler os livros de Machado de Assis”). Não é o caso aqui.
Estratégia: Atenção ao sentido profundo das palavras e não apenas à identificação superficial. Paradoxos são armadilhas comuns em provas, pois apresentam construção aparentemente contraditória, mas carregam uma reflexão.
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