“Identidade nacional
representa um conjunto de sentimentos
que fazem com que um indivíduo se sinta
parte de uma sociedade ou nação. A língua
é um importante elemento na constituição
da identidade de um povo. Ela permite
reconhecer membros da comunidade,
diferenciar estrangeiros e transmitir
tradições”. Das proposições a seguir,
marque a que não aparece o sentimento de
não pertencimento:
Venenos de Deus, remédios do diabo: as
incuráveis vidas de Vila Cacimba
– Noutro dia, você zangou-se comigo porque eu
não o chamava pelo seu nome inteiro. Mas eu
conheço o seu segredo.
– Não tenho segredos. Quem tem segredos são
as mulheres.
– O seu nome é Tsotsi. Bartolomeu Tsotsi.
– Quem lhe contou isso? De certeza que foi o
cabrão do Administrador.
Acabrunhado, Bartolomeu aceitou. Primeiro,
foram os outros que lhe mudaram o nome, no
baptismo. Depois, quando pôde voltar a ser
ele mesmo, já tinha aprendido a ter vergonha
de seu nome original. Ele se colonizara a si
mesmo. E Tsotsi dera origem a Sozinho
[Bartolomeu Sozinho].
– Eu sonhava ser mecânico, para consertar o
mundo. Mas aqui para nós que ninguém nos
ouve: um mecânico pode chamar-se Tsotsi?
– Ini nkabe dziua.
– Ah, o Doutor já anda a aprender a língua
deles?
– Deles? Afinal, já não é a sua língua?
– Não sei, eu já nem sei...
O médico olha para o parapeito e estremece de
ver tão frágil, tão transitório aquele que é
seu único amigo em Vila Cacimba. O aro da
janela surge como uma moldura da
derradeira fotografia desse teimoso
mecânico reformado.
– Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?
– Depende – responde o português.
– O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?
– Sim.
– Eu gostava muito de desmaiar. Não queria
morrer sem desmaiar.
O desmaio é uma morte preguiçosa, um
falecimento de duração temporária. O
português, que era um guarda-fronteira da
Vida, que facilitasse uma escapadela dessas,
uma breve perda de sentidos.
– Me receite um remédio para eu desmaiar.
O português ri-se. Também a ele lhe apetecia
uma intermitente ilucidez, uma pausa na
obrigação de existir.
– Uma marretada na cabeça é a única coisa que
me ocorre.
Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma
língua. Ou talvez o riso seja uma língua O português confessa sentir inveja de não ter
duas línguas. E poder usar uma delas para
perder o passado. E outra para ludibriar o
presente.
– A propósito de língua, sabe uma coisa, Doutor
Sidonho? Eu já me estou a desmulatar.
E exibe a língua, olhos cerrados, boca
escancarada. O médico franze o sobrolho,
confrangido: a mucosa está coberta de
fungos, formando uma placa esbranquiçada.
– Quais fungos? – reage Bartolomeu. – Eu estou
é a ficar branco de língua, deve ser porque
só falo português...
O riso degenera em tosse e o português se
afasta, cauteloso, daquele foco contaminoso.
[...]
O médico olha para o parapeito e estremece de
ver tão frágil, tão transitório aquele que é
seu único amigo em Vila Cacimba. O aro da
janela surge como uma moldura da
derradeira fotografia desse teimoso
mecânico reformado.
– Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?
– Depende – responde o português.
– O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?
– Sim.
– Eu gostava muito de desmaiar. Não queria
morrer sem desmaiar.
O desmaio é uma morte preguiçosa, um
falecimento de duração temporária. O
português, que era um guarda-fronteira da
Vida, que facilitasse uma escapadela dessas,
uma breve perda de sentidos.
– Me receite um remédio para eu desmaiar.
O português ri-se. Também a ele lhe apetecia
uma intermitente ilucidez, uma pausa na
obrigação de existir.
– Uma marretada na cabeça é a única coisa que
me ocorre.
Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma
língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o
mundo foi deixando de ser nosso. [...]
(COUTO, Mia. Venenos de Deus, remédios do diabo:
as incuráveis vidas de Vila Cacimba. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, pp. 110-113)
Venenos de Deus, remédios do diabo: as incuráveis vidas de Vila Cacimba
– Noutro dia, você zangou-se comigo porque eu não o chamava pelo seu nome inteiro. Mas eu conheço o seu segredo.
– Não tenho segredos. Quem tem segredos são as mulheres.
– O seu nome é Tsotsi. Bartolomeu Tsotsi.
– Quem lhe contou isso? De certeza que foi o cabrão do Administrador.
Acabrunhado, Bartolomeu aceitou. Primeiro, foram os outros que lhe mudaram o nome, no baptismo. Depois, quando pôde voltar a ser ele mesmo, já tinha aprendido a ter vergonha de seu nome original. Ele se colonizara a si mesmo. E Tsotsi dera origem a Sozinho [Bartolomeu Sozinho].
– Eu sonhava ser mecânico, para consertar o mundo. Mas aqui para nós que ninguém nos ouve: um mecânico pode chamar-se Tsotsi?
– Ini nkabe dziua.
– Ah, o Doutor já anda a aprender a língua deles?
– Deles? Afinal, já não é a sua língua?
– Não sei, eu já nem sei...
O médico olha para o parapeito e estremece de ver tão frágil, tão transitório aquele que é seu único amigo em Vila Cacimba. O aro da janela surge como uma moldura da derradeira fotografia desse teimoso mecânico reformado.
– Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?
– Depende – responde o português.
– O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?
– Sim.
– Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.
O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da Vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda de sentidos.
– Me receite um remédio para eu desmaiar.
O português ri-se. Também a ele lhe apetecia uma intermitente ilucidez, uma pausa na obrigação de existir.
– Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.
Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua O português confessa sentir inveja de não ter duas línguas. E poder usar uma delas para perder o passado. E outra para ludibriar o presente.
– A propósito de língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu já me estou a desmulatar.
E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. O médico franze o sobrolho, confrangido: a mucosa está coberta de fungos, formando uma placa esbranquiçada.
– Quais fungos? – reage Bartolomeu. – Eu estou é a ficar branco de língua, deve ser porque só falo português...
O riso degenera em tosse e o português se afasta, cauteloso, daquele foco contaminoso.
[...]
O médico olha para o parapeito e estremece de ver tão frágil, tão transitório aquele que é seu único amigo em Vila Cacimba. O aro da janela surge como uma moldura da derradeira fotografia desse teimoso mecânico reformado.
– Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?
– Depende – responde o português.
– O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?
– Sim.
– Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.
O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da Vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda de sentidos.
– Me receite um remédio para eu desmaiar.
O português ri-se. Também a ele lhe apetecia uma intermitente ilucidez, uma pausa na obrigação de existir.
– Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.
Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso. [...]
(COUTO, Mia. Venenos de Deus, remédios do diabo:
as incuráveis vidas de Vila Cacimba. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, pp. 110-113)