Assinale a alternativa cuja máxima está em conformidade
com o excerto e com a proposta do teatro de Gil Vicente.
Para responder a questão, leia o excerto de Auto da Barca do Inferno do escritor português Gil Vicente (1465?-1536?). A peça prefigura o destino das almas que chegam a um braço de mar onde se encontram duas barcas (embarcações): uma destinada ao Paraíso, comandada pelo anjo, e outra destinada ao Inferno, comandada pelo diabo.
Vem um Frade com uma Moça pela mão […]; e elemesmo fazendo a baixa1 começou a dançar, dizendoFrade: Tai-rai-rai-ra-rã ta-ri-ri-rã; Tai-rai-rai-ra-rã ta-ri-ri-rã; Tã-tã-ta-ri-rim-rim-rã, huha!Diabo: Que é isso, padre? Quem vai lá?Frade: Deo gratias2 ! Sou cortesão.Diabo: Danças também o tordião3 ?Frade: Por que não? Vê como sei.Diabo: Pois entrai, eu tangerei4 e faremos um serão. E essa dama, porventura?Frade: Por minha a tenho eu, e sempre a tive de meu.Diabo: Fizeste bem, que é lindura! Não vos punham lá censura no vosso convento santo?Frade: E eles fazem outro tanto!Diabo: Que preciosa clausura5!Entrai, padre reverendo!Frade: Para onde levais gente?Diabo: Para aquele fogo ardente que não temestes vivendo.Frade: Juro a Deus que não te entendo! E este hábito6não me val7?Diabo: Gentil padre mundanal8 a Belzebu vos encomendo!Frade: Corpo de Deus consagrado! Pela fé de Jesus Cristo, que eu não posso entender isto! Eu hei de ser condenado? Um padre tão namorado e tanto dado à virtude? Assim Deus me dê saúde, que eu estou maravilhado!Diabo: Não façamos mais detença9 embarcai e partiremos; tomareis um par de remos.Frade: Não ficou isso na avença10.Diabo: Pois dada está já a sentença!Frade: Por Deus! Essa seria ela? Não vai em tal caravela minha senhora Florença? Como? Por ser namorado e folgar c’uma mulher? Se há um frade de perder, com tanto salmo rezado?!Diabo: Ora estás bem arranjado!Frade: Mas estás tu bem servido.Diabo: Devoto padre e marido, haveis de ser cá pingado11…
(Auto da Barca do Inferno, 2007.)
1
baixa: dança popular no século XVI.
2
Deo gratias: graças a Deus.
3
tordião: outra dança popular no século XVI.
4
tanger: fazer soar um instrumento.
5
clausura: convento.
6
hábito: traje religioso.
7
val: vale.
8
mundanal: mundano.
9
detença: demora.
10 avença: acordo.
11 ser pingado: ser pingado com gotas de gordura fervendo (segundo o
imaginário popular, processo de tortura que ocorreria no inferno)
Gabarito comentado
Gabarito comentado: Alternativa C
Tema central: A questão envolve interpretação de texto, exigindo a compreensão da crítica social implícita no excerto de “Auto da Barca do Inferno”, de Gil Vicente. Destaca-se também o reconhecimento do papel do humor e da sátira na denúncia dos comportamentos e costumes da sociedade.
Justificativa da alternativa correta (C):
“Pelo riso, corrigem-se os costumes.” Essa opção traduz exatamente a proposta vicentina: usar o riso como instrumento de crítica social e moralização, expondo hipocrisias e falhas, mas buscando provocar a reflexão e corrigir os comportamentos. Segundo Bechara e outros gramáticos, a sátira é um recurso estilístico histórico do teatro moralizante, e Gil Vicente é referência nesse uso.
No excerto apresentado, vemos o Frade dançante, desacatando os preceitos religiosos e interagindo ironicamente com o Diabo. O tom burlesco evidencia a crítica: não é pelo castigo direto ou sermão, mas pelo ridículo e pelo riso que o autor convida a sociedade à autocrítica.
Análise das alternativas incorretas:
- A) “O riso é abundante na boca dos tolos.” – Reduz o riso a tolice, contrário à proposta vicentina, que valoriza o riso como crítica construtiva.
- B) “A religião é o ópio do povo.” – Frase marxista com sentido de alienação, não se relaciona à função crítica e moralizadora do teatro vicentino.
- D) “De boas intenções, o inferno está cheio.” – Ressalta a hipocrisia, mas não aborda o uso do riso como ferramenta de correção, central para o texto.
- E) “O homem é o único animal que ri dos outros.” – Trata da natureza do riso, mas não associa o riso à crítica e transformação social.
Para resolver questões assim:
• Releia o texto buscando o objetivo do autor.
• Identifique as intenções por trás do humor: crítica ou deboche?
• Elimine alternativas que distorcem ou desviam do foco central.
Em resumo: A obra de Gil Vicente evidencia que resolver-se pelo riso é transformar costumes, corrigindo-os por meio da sátira e do espelho cômico.
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