O cronista manifesta um juízo de valor sobre a sua própria
época em:
Para responder a questão, leia a crônica
“Anúncio de João Alves”, de Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987), publicada originalmente em 1954.
Figura o anúncio em um jornal que o amigo me mandou,
e está assim redigido:
À procura de uma besta. – A partir de 6 de outubro do
ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com
os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos
os membros locomotores, um pequeno quisto na base da
orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência
de um golpe, cuja extensão pode alcançar de
quatro a seis centímetros, produzido por jumento.
Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste
comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz
ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas
todas as indagações.
Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer
entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar, será
razoavelmente remunerado. Itambé do Mato Dentro, 19 de
novembro de 1899. (a) João Alves Júnior.
Cinquenta e cinco anos depois, prezado João Alves
Júnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido,
já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado,
repousas suavemente no pequeno cemitério de Itambé.
Mas teu anúncio continua um modelo no gênero, se não
para ser imitado, ao menos como objeto de admiração
literária.
Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem.
Não escreveste apressada e toscamente, como seria
de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste,
pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de
novembro recorreste à Cidade de Itabira. Antes, procedeste
a indagações. Falharam. Formulaste depois um
raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta.
Não disseste que todos os seus cascos estavam ferrados;
preferiste dizê-lo “de todos os seus membros locomotores”.
Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha
e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista
e histórico atribuiu com segurança a um jumento.
Por ser “muito domiciliada nas cercanias deste comércio”,
isto é, do povoado e sua feirinha semanal, inferiste
que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo,
não o afirmas em tom peremptório: “tudo me induz a esse
cálculo”. Revelas aí a prudência mineira, que não avança
(ou não avançava) aquilo que não seja a evidência
mesma. É cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada
como qualquer outra, e não denúncia formal.
Finalmente – deixando de lado outras excelências de
tua prosa útil – a declaração final: quem a apreender ou
pelo menos “notícia exata ministrar”, será “razoavelmente
remunerado”. Não prometes recompensa tentadora; não
fazes praça de generosidade ou largueza; acenas com o
razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer
mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.
Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta,
meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa criação
volta a existir, porque soubeste descrevê-la com decoro
e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e
alguém hoje a descobre, e muitos outros são informados
da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais
perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há
essa precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa
moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo,
esse amor à tarefa bem-feita, que se pode manifestar até
mesmo num anúncio de besta sumida.
(Fala, amendoeira, 2012.)
Para responder a questão, leia a crônica “Anúncio de João Alves”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), publicada originalmente em 1954.
Figura o anúncio em um jornal que o amigo me mandou, e está assim redigido:
À procura de uma besta. – A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de quatro a seis centímetros, produzido por jumento.
Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações.
Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado. Itambé do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. (a) João Alves Júnior.
Cinquenta e cinco anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitério de Itambé. Mas teu anúncio continua um modelo no gênero, se não para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária.
Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de novembro recorreste à Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagações. Falharam. Formulaste depois um raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta.
Não disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste dizê-lo “de todos os seus membros locomotores”. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista e histórico atribuiu com segurança a um jumento.
Por ser “muito domiciliada nas cercanias deste comércio”, isto é, do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório: “tudo me induz a esse cálculo”. Revelas aí a prudência mineira, que não avança (ou não avançava) aquilo que não seja a evidência mesma. É cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer outra, e não denúncia formal.
Finalmente – deixando de lado outras excelências de tua prosa útil – a declaração final: quem a apreender ou pelo menos “notícia exata ministrar”, será “razoavelmente remunerado”. Não prometes recompensa tentadora; não fazes praça de generosidade ou largueza; acenas com o razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.
Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa criação volta a existir, porque soubeste descrevê-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos outros são informados da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse amor à tarefa bem-feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida.
(Fala, amendoeira, 2012.)
Gabarito comentado
Tema central da questão: Interpretação de texto, especificamente a identificação de juízo de valor no discurso do autor. Segundo a norma-padrão e gramáticas de referência (Cunha & Cintra; Bechara), juízo de valor é quando o autor manifesta uma opinião, avaliação ou apreciação subjetiva, diferenciando-se do juízo de fato, que é objetivo.
Justificativa para a alternativa correta (D):
No trecho “Já não há essa precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse amor à tarefa bem-feita...”, o cronista compara sua época com o passado e expressa claramente uma avaliação negativa sobre seu tempo, afirmando que esses valores se perderam. As expressões “já não há” e “não há, sobretudo” marcando ausência e lamento, evidenciam o juízo de valor subjetivo. Isso está alinhado com o conceito de juízo apreciativo da interpretação textual, em que o autor julga e compara diferentes tempos/lugares a partir de seu ponto de vista.
Análise das alternativas incorretas:
A) Limita-se a elogiar o anúncio do passado, mas não faz julgamento sobre a própria época do cronista.
B) Relata um fato (desaparecimento e morte), sem qualquer apreciação sobre o tempo atual.
C) Apenas apresenta o contexto do anúncio, sem emitir opinião.
E) Destaca o efeito duradouro do texto de João Alves, sem juízo comparativo sobre os costumes ou valores do tempo do cronista.
Dicas de interpretação:
- Em questões sobre “juízo de valor”, procure marcas de subjetividade (ex: “já não há”, “melhor”, “pior”, “lamentável”).
- Palavras que expressam opinião, comparação e lamento geralmente indicam apreciação subjetiva.
- Atenção ao contexto: o “juízo de valor” compara ou avalia dois momentos (passado e presente).
Referências: Nova Gramática do Português Contemporâneo (Cunha & Cintra), Moderna Gramática Portuguesa (Bechara), Manual de Redação da Presidência da República.
Em resumo: a alternativa D é a correta, porque expressa opinião crítica do cronista sobre sua época, característica típica do juízo de valor.
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