Texto 1
As gravatas de Mário Quintana
(não basta saber uma língua para entendê-la)
Como é que uma pessoa se comunica com a
outra? Como fazemos para transmitir ideias?
A resposta parece bastante óbvia: transmitimos
ideias usando a língua. Assim, se vou passando na rua
e vejo um avestruz (digamos que seja uma rua muito
peculiar, onde o tráfego de avestruzes é intenso), digo
ao meu amigo: Olha, lá vai um avestruz. Com isso,
transmito determinada informação ao meu amigo; em
outras palavras, passo para a mente de outra pessoa
uma ideia que estava originalmente em minha mente.
Para isso, evidentemente, é preciso que as duas
pessoas em questão conheçam a mesma língua, que
ambas chamem aquele animal desajeitado de avestruz;
que ambas saibam utilizar os verbos olhar e ir, e assim
por diante. Uma vez isso arranjado, as duas pessoas se
entenderão. Para que as pessoas se entendam, é
necessário – e suficiente – que falem a mesma língua.
É isso mesmo? Veremos que não. Na verdade,
para que se dê a compreensão, mesmo em nível bastante
elementar, é necessário que as pessoas tenham muito
mais em comum que simplesmente uma língua.
Precisam ter em comum um grande número de
informações, precisam pertencer a meios culturais
semelhantes, precisam mesmo ter, até certo ponto,
crenças comuns. Sem isso, a língua simplesmente deixa
de funcionar enquanto instrumento de comunicação. Na
verdade, a comunicação linguística é um processo
bastante precário; depende de tantos fatores que falham
com muita frequência, para desânimo de muitos que ficam
gemendo Por que é que ele não me entendeu?
O problema é que o que a língua exprime é
apenas uma parte do que se quer transmitir. Geralmente,
se pensa no processo de comunicação como uma rua
de mão única: a informação passa do falante para o
ouvinte (ou do autor para o leitor). Se fosse assim, a
estrutura linguística teria de ser suficiente para veicular
a mensagem, porque, afinal de contas, a única coisa
que o emissor realmente produz é um conjunto de sons
(ou de riscos no papel), organizados de acordo com as
regras da língua. Mesmo isso, como vimos, depende de alguma coisa por parte do receptor, a saber, o
conhecimento das palavras e das regras da língua; mas
poderia ser só isso, e as coisas seriam muito mais
simples – e, também, talvez os seres humanos se
entendessem melhor. (...)
O significado de uma frase não é simples função
de seus elementos constitutivos, mas depende ainda da
informação extralinguística. Ou ainda (e aqui me oponho
às crenças de boa parte de meus colegas linguistas),
uma frase fora de contexto não tem, a rigor, significado.
Vamos ver o exemplo: seja o sintagma as
gravatas de Mário Quintana. Que significa isso? E, em
especial, que tipo de relação exprime a preposição de?
Evidentemente, de exprime “posse", e o sintagma equivale
a as gravatas pertencem a Mário Quintana. Pode parecer,
então, que computamos o significado do sintagma
simplesmente juntando o significado das palavras: as
gravatas + de + Mário Quintana.
Mas ainda aqui isso é só a primeira impressão.
Digamos que o sintagma fosse as gravatas de Pierre
Cardin; agora, para alguém que sabe quem é Pierre
Cardin, a relação expressa pela preposição de já não
precisa ser de posse. Na verdade, é mais provável que
se entenda como “autoria", isto é, as gravatas criadas
por Pierre Cardin.
Ora, a preposição é a mesma nos dois casos.
De onde vem essa diferença de significado?
Simplesmente do que sabemos sobre Mário Quintana
(um poeta) e sobre Pierre Cardin (um estilista de moda).
Se dissermos os poemas de Mário Quintana, a
preposição já não exprimirá posse, mas autoria – porque,
já que Mário Quintana é um poeta, é plausível que se
fale dos poemas de sua autoria; além do mais, em geral,
não se pensa em poemas como tendo possuidor.
Se a situação é essa, não faz sentido perguntar
se o significado da preposição de é de posse ou autoria.
Será posse ou autoria segundo o que soubermos dos
diversos objetos ou pessoas mencionadas: se se trata
de um objeto possuível, como uma gravata, ou não
possuível, como um poema; e se se trata de um poeta
ou de um costureiro.
(PERINI, Mário A. Sofrendo a gramática. São Paulo: Ática,
2000, páginas 57-60.)