Infância
Uma noite, depois do café, meu pai me mandou
buscar um livro que deixara na cabeceira da cama.
Novidade: meu velho nunca se dirigia a mim. E eu, engolido
o café, beijava-lhe a mão, porque isto era praxe,
mergulhava na rede e adormecia. Espantado, entrei no
quarto, peguei com repugnância o antipático objeto e voltei
à sala de jantar. Aí recebi ordem para me sentar e abrir o
volume. Obedeci engulhando, com a vaga esperança de
que uma visita me interrompesse. Ninguém nos visitou
naquela noite extraordinária.
Meu pai determinou que eu principiasse a leitura.
Principiei. Mastigando as palavras, gaguejando, gemendo
uma cantilena medonha, indiferente à pontuação, saltando
linhas e repisando linhas, alcancei o fim da página, sem
ouvir gritos. Parei surpreendido, virei a folha, continuei a
arrastar-me na gemedeira, como um carro em estrada
cheia de buracos.
Com certeza o negociante recebera alguma dívida
perdida: no meio do capítulo pôs-se a conversar comigo,
perguntou-me se eu estava compreendendo o que lia.
Explicou-me que se tratava de uma história, um romance,
exigiu atenção e resumiu a parte já lida. Um casal com
filhos andava numa floresta, em noite de inverno,
perseguido por lobos, cachorros selvagens. Depois de
muito correr, essas criaturas chegavam à cabana de um
lenhador. Era ou não era? Traduziu-me em linguagem de
cozinha diversas expressões literárias. Animei-me a
parolar. Sim, realmente havia alguma coisa no livro, mas
era difícil conhecer tudo.
Alinhavei o resto do capítulo, diligenciando penetrar
o sentido da prosa confusa, aventurando-me às vezes a
inquirir. E uma luzinha quase imperceptível surgia longe,
apagava-se, ressurgia, vacilante, nas trevas do meu
espírito.
Recolhi-me preocupado: os fugitivos, os lobos e o
lenhador agitaram-me o sono. Dormi com eles, acordei
com eles. As horas voaram. Alheio à escola, aos
brinquedos de minhas irmãs, à tagarelice dos moleques,
vivi com essas criaturas de sonho, incompletas e
misteriosas.
À noite meu pai me pediu novamente o volume, e a
cena da véspera se reproduziu: leitura emperrada,
mal-entendidos, explicações.
Na terceira noite fui buscar o livro espontaneamente,
mas o velho estava sombrio e silencioso. E no dia seguinte,
quando me preparei para moer a narrativa, afastou-me
com um gesto, carrancudo.
Nunca experimentei decepção tão grande. Era como
se tivesse descoberto uma coisa muito preciosa e de
repente a maravilha se quebrasse. E o homem que a
reduziu a cacos, depois de me haver ajudado a encontrá-la, não imaginou a minha desgraça. A princípio foi
desespero, sensação de perda e ruína, em seguida uma
longa covardia, a certeza de que as horas de encanto
eram boas demais para mim e não podiam durar.
RAMOS, Graciliano.
Infância. São Paulo: Record, 1995.
p.187-191.