Questão d44fd6e9-96
Prova:
Disciplina:
Assunto:
A passagem “Traduziu-me em linguagem de
cozinha diversas expressões literárias" apresenta a
seguinte oposição entre dois usos da linguagem:
A passagem “Traduziu-me em linguagem de
cozinha diversas expressões literárias" apresenta a
seguinte oposição entre dois usos da linguagem:
Infância
Uma noite, depois do café, meu pai me mandou
buscar um livro que deixara na cabeceira da cama.
Novidade: meu velho nunca se dirigia a mim. E eu, engolido
o café, beijava-lhe a mão, porque isto era praxe,
mergulhava na rede e adormecia. Espantado, entrei no
quarto, peguei com repugnância o antipático objeto e voltei
à sala de jantar. Aí recebi ordem para me sentar e abrir o
volume. Obedeci engulhando, com a vaga esperança de
que uma visita me interrompesse. Ninguém nos visitou
naquela noite extraordinária.
Meu pai determinou que eu principiasse a leitura.
Principiei. Mastigando as palavras, gaguejando, gemendo
uma cantilena medonha, indiferente à pontuação, saltando
linhas e repisando linhas, alcancei o fim da página, sem
ouvir gritos. Parei surpreendido, virei a folha, continuei a
arrastar-me na gemedeira, como um carro em estrada
cheia de buracos.
Com certeza o negociante recebera alguma dívida
perdida: no meio do capítulo pôs-se a conversar comigo,
perguntou-me se eu estava compreendendo o que lia.
Explicou-me que se tratava de uma história, um romance,
exigiu atenção e resumiu a parte já lida. Um casal com
filhos andava numa floresta, em noite de inverno,
perseguido por lobos, cachorros selvagens. Depois de
muito correr, essas criaturas chegavam à cabana de um
lenhador. Era ou não era? Traduziu-me em linguagem de
cozinha diversas expressões literárias. Animei-me a
parolar. Sim, realmente havia alguma coisa no livro, mas
era difícil conhecer tudo.
Alinhavei o resto do capítulo, diligenciando penetrar
o sentido da prosa confusa, aventurando-me às vezes a
inquirir. E uma luzinha quase imperceptível surgia longe,
apagava-se, ressurgia, vacilante, nas trevas do meu
espírito.
Recolhi-me preocupado: os fugitivos, os lobos e o
lenhador agitaram-me o sono. Dormi com eles, acordei
com eles. As horas voaram. Alheio à escola, aos
brinquedos de minhas irmãs, à tagarelice dos moleques,
vivi com essas criaturas de sonho, incompletas e
misteriosas.
À noite meu pai me pediu novamente o volume, e a
cena da véspera se reproduziu: leitura emperrada,
mal-entendidos, explicações.
Na terceira noite fui buscar o livro espontaneamente,
mas o velho estava sombrio e silencioso. E no dia seguinte,
quando me preparei para moer a narrativa, afastou-me
com um gesto, carrancudo.
Nunca experimentei decepção tão grande. Era como
se tivesse descoberto uma coisa muito preciosa e de
repente a maravilha se quebrasse. E o homem que a
reduziu a cacos, depois de me haver ajudado a encontrá-la, não imaginou a minha desgraça. A princípio foi
desespero, sensação de perda e ruína, em seguida uma
longa covardia, a certeza de que as horas de encanto
eram boas demais para mim e não podiam durar.
RAMOS, Graciliano. Infância. São Paulo: Record, 1995.
p.187-191.
Infância
RAMOS, Graciliano. Infância. São Paulo: Record, 1995. p.187-191.
Uma noite, depois do café, meu pai me mandou
buscar um livro que deixara na cabeceira da cama.
Novidade: meu velho nunca se dirigia a mim. E eu, engolido
o café, beijava-lhe a mão, porque isto era praxe,
mergulhava na rede e adormecia. Espantado, entrei no
quarto, peguei com repugnância o antipático objeto e voltei
à sala de jantar. Aí recebi ordem para me sentar e abrir o
volume. Obedeci engulhando, com a vaga esperança de
que uma visita me interrompesse. Ninguém nos visitou
naquela noite extraordinária.
Meu pai determinou que eu principiasse a leitura. Principiei. Mastigando as palavras, gaguejando, gemendo uma cantilena medonha, indiferente à pontuação, saltando linhas e repisando linhas, alcancei o fim da página, sem ouvir gritos. Parei surpreendido, virei a folha, continuei a arrastar-me na gemedeira, como um carro em estrada cheia de buracos.
Com certeza o negociante recebera alguma dívida perdida: no meio do capítulo pôs-se a conversar comigo, perguntou-me se eu estava compreendendo o que lia. Explicou-me que se tratava de uma história, um romance, exigiu atenção e resumiu a parte já lida. Um casal com filhos andava numa floresta, em noite de inverno, perseguido por lobos, cachorros selvagens. Depois de muito correr, essas criaturas chegavam à cabana de um lenhador. Era ou não era? Traduziu-me em linguagem de cozinha diversas expressões literárias. Animei-me a parolar. Sim, realmente havia alguma coisa no livro, mas era difícil conhecer tudo.
Alinhavei o resto do capítulo, diligenciando penetrar o sentido da prosa confusa, aventurando-me às vezes a inquirir. E uma luzinha quase imperceptível surgia longe, apagava-se, ressurgia, vacilante, nas trevas do meu espírito.
Recolhi-me preocupado: os fugitivos, os lobos e o lenhador agitaram-me o sono. Dormi com eles, acordei com eles. As horas voaram. Alheio à escola, aos brinquedos de minhas irmãs, à tagarelice dos moleques, vivi com essas criaturas de sonho, incompletas e misteriosas.
À noite meu pai me pediu novamente o volume, e a cena da véspera se reproduziu: leitura emperrada, mal-entendidos, explicações.
Na terceira noite fui buscar o livro espontaneamente, mas o velho estava sombrio e silencioso. E no dia seguinte, quando me preparei para moer a narrativa, afastou-me com um gesto, carrancudo.
Nunca experimentei decepção tão grande. Era como se tivesse descoberto uma coisa muito preciosa e de repente a maravilha se quebrasse. E o homem que a reduziu a cacos, depois de me haver ajudado a encontrá-la, não imaginou a minha desgraça. A princípio foi desespero, sensação de perda e ruína, em seguida uma longa covardia, a certeza de que as horas de encanto eram boas demais para mim e não podiam durar.
Meu pai determinou que eu principiasse a leitura. Principiei. Mastigando as palavras, gaguejando, gemendo uma cantilena medonha, indiferente à pontuação, saltando linhas e repisando linhas, alcancei o fim da página, sem ouvir gritos. Parei surpreendido, virei a folha, continuei a arrastar-me na gemedeira, como um carro em estrada cheia de buracos.
Com certeza o negociante recebera alguma dívida perdida: no meio do capítulo pôs-se a conversar comigo, perguntou-me se eu estava compreendendo o que lia. Explicou-me que se tratava de uma história, um romance, exigiu atenção e resumiu a parte já lida. Um casal com filhos andava numa floresta, em noite de inverno, perseguido por lobos, cachorros selvagens. Depois de muito correr, essas criaturas chegavam à cabana de um lenhador. Era ou não era? Traduziu-me em linguagem de cozinha diversas expressões literárias. Animei-me a parolar. Sim, realmente havia alguma coisa no livro, mas era difícil conhecer tudo.
Alinhavei o resto do capítulo, diligenciando penetrar o sentido da prosa confusa, aventurando-me às vezes a inquirir. E uma luzinha quase imperceptível surgia longe, apagava-se, ressurgia, vacilante, nas trevas do meu espírito.
Recolhi-me preocupado: os fugitivos, os lobos e o lenhador agitaram-me o sono. Dormi com eles, acordei com eles. As horas voaram. Alheio à escola, aos brinquedos de minhas irmãs, à tagarelice dos moleques, vivi com essas criaturas de sonho, incompletas e misteriosas.
À noite meu pai me pediu novamente o volume, e a cena da véspera se reproduziu: leitura emperrada, mal-entendidos, explicações.
Na terceira noite fui buscar o livro espontaneamente, mas o velho estava sombrio e silencioso. E no dia seguinte, quando me preparei para moer a narrativa, afastou-me com um gesto, carrancudo.
Nunca experimentei decepção tão grande. Era como se tivesse descoberto uma coisa muito preciosa e de repente a maravilha se quebrasse. E o homem que a reduziu a cacos, depois de me haver ajudado a encontrá-la, não imaginou a minha desgraça. A princípio foi desespero, sensação de perda e ruína, em seguida uma longa covardia, a certeza de que as horas de encanto eram boas demais para mim e não podiam durar.
RAMOS, Graciliano. Infância. São Paulo: Record, 1995. p.187-191.
A
a linguagem própria do mundo da gastronomia,
voltado para a arte culinária, e a linguagem literária,
que amplia o sentido de palavras e expressões de
modo a criar novos e múltiplos sentidos.
B
o uso culto da língua, que obedece às regras
gramaticais e, por isso, não exige uma tradução, e
as expressões literárias, que precisam ser
traduzidas.
C
a linguagem coloquial, usada pela maioria das
pessoas no cotidiano, e a linguagem literária, que
costuma utilizar palavras e expressões que já
caíram em desuso.
D
a linguagem comum, do dia a dia, usada de forma
espontânea, e a linguagem literária, que requer
um trabalho apurado para construir efeitos
artísticos e expressivos.