Em ’’O grau da expectativa futebolístico-messiânica é altíssimo, e não é de
se espantar que o time brasileiro entre em colapso em certas situações
cruciais. Aliás, isso já aconteceu pelo menos três vezes: lá no Maracanazo,
agora no Mineiraço, e na final de 1998 na França, depois da convulsão de
Ronaldo. Não me consta que outras seleções nacionais passem pela mesma síndrome. Uma vez é um acidente. Duas, uma coincidência. Mas três é
uma estrutura’’, a função de linguagem predominante seria:
Texto para a questão:
Complexo de d. Sebastião
Neymar expia a culpa pela derrota, mas as mudanças em
nosso futebol não podem mais esperar, diz autor
Entrevista de Ivan Marsiglia com José Miguel Wisnik
ESTADÃO - A palavra mais usada nas avaliações da derrota da seleção brasileira para a alemã, por 7 a 1, na Copa de 2014, foi “apagão”. Concorda com
ela?
WISNIK - Prefiro “implosão”. “Apagão” sugere uma falha de energia, um acidente de percurso, um lapso momentâneo. A comissão técnica, que se especializou na negação da evidência e da amplitude dos fatos, apega-se a essa
versão. Implosão, em vez disso, significa que uma estrutura cedeu a pressões
que ela não pôde mais suportar. Acho que é claramente esse o caso. Ou, pelo
menos, é esse o claro enigma.
ESTADÃO - Outra palavra muito repetida foi 'vexame', e de tal proporção
que teria redimido a histórica derrota na final de 1950 para o Uruguai.
WISNIK - “Vexame” dá uma inflexão moral a essa catástrofe futebolística, e
quem dirá que não se trata de uma tremenda humilhação esportiva? Mas
martelar a palavra soa como uma atualização do gozo regressivo da eleição
do bode expiatório. Não vejo mais essa necessidade de achar nos jogadores
o novo Barbosa e o novo Bigode, [jogadores culpabilizados pela derrota da
seleção na Copa de 1950] felizmente. O que não passou, no entanto, é a
permanente espera mágica pela vitória por goleada, independente da existência do adversário, combinada com a precária análise dos dados de
realidade. Esse desequilíbrio pesa sobre os jogadores. O grau da expectativa
futebolístico-messiânica é altíssimo, e não é de se espantar que o time
brasileiro entre em colapso em certas situações cruciais. Aliás, isso já aconceu pelo menos três vezes: lá no Maracanazo [Copa de 1950], agora no
Mineiraço, e na final de 1998 na França, depois da convulsão de Ronaldo.
Não me consta que outras seleções nacionais passem pela mesma síndrome.
Uma vez é um acidente. Duas, uma coincidência. Mas três é uma estrutura.
ESTADÃO - E de onde vem essa estrutura?
WISNIK - Essas partidas fazem pensar na batalha de Alcácer Quibir, em 1578,
durante a qual, segundo relatos, o jovem rei português d. Sebastião foi
tomado por estranha catatonia, antes de desaparecer no deserto e ter a sua
volta aguardada durante séculos pelos portugueses. [...] Em 1950, a equipe,
encolhida na partida final ante a enormidade do sucesso ou do fracasso
inéditos, esteve paralisada abaixo do seu tamanho. Em 2014, sucumbiu ante
a expectativa maciça, projetada sobre ela, por algo maior do que seu
tamanho. Nos dois casos, espelhados sintomaticamente em território brasileiro, há uma resistente dificuldade de dimensionar, isto é, de encarar o real,
que se junta à euforização publicitária, à cobertura da Rede Globo, aos
oportunismos políticos de todo tipo e ao baixo nível médio da cultura futebolística. Tudo continua muito parecido com o ambiente que cercou a final
de 1950, embora sem a mesma inocência trágica.
ESTADÃO - Você escreveu que 'a glorificação frenética de Neymar, justificada pela excepcionalidade do jogador, disfarça uma ansiedade compensatória de fundo'. Por quê?
WISNIK - Sem querer me repetir, [a figura de Neymar] ferida encarnava d.
Sebastião em batalha, desaparecido do campo, mas preservado misteriosamente da desgraça explícita e ocupando mais ainda o lugar mítico do Desejado.
(O Estado de S. Paulo, 12/07/2014. Disponível em http://m.estadao.com.br/ O Estado de S. Paulo
noticias/ali%C3%A1s,complexo-de-d-sebastiao,1527395,0.htm, acesso em 01/09/2014)
Texto para a questão:
Complexo de d. Sebastião
Neymar expia a culpa pela derrota, mas as mudanças em
nosso futebol não podem mais esperar, diz autor
Entrevista de Ivan Marsiglia com José Miguel Wisnik
ESTADÃO - A palavra mais usada nas avaliações da derrota da seleção brasileira para a alemã, por 7 a 1, na Copa de 2014, foi “apagão”. Concorda com ela?
WISNIK - Prefiro “implosão”. “Apagão” sugere uma falha de energia, um acidente de percurso, um lapso momentâneo. A comissão técnica, que se especializou na negação da evidência e da amplitude dos fatos, apega-se a essa versão. Implosão, em vez disso, significa que uma estrutura cedeu a pressões que ela não pôde mais suportar. Acho que é claramente esse o caso. Ou, pelo menos, é esse o claro enigma.
ESTADÃO - Outra palavra muito repetida foi 'vexame', e de tal proporção que teria redimido a histórica derrota na final de 1950 para o Uruguai.
WISNIK - “Vexame” dá uma inflexão moral a essa catástrofe futebolística, e quem dirá que não se trata de uma tremenda humilhação esportiva? Mas martelar a palavra soa como uma atualização do gozo regressivo da eleição do bode expiatório. Não vejo mais essa necessidade de achar nos jogadores o novo Barbosa e o novo Bigode, [jogadores culpabilizados pela derrota da seleção na Copa de 1950] felizmente. O que não passou, no entanto, é a permanente espera mágica pela vitória por goleada, independente da existência do adversário, combinada com a precária análise dos dados de realidade. Esse desequilíbrio pesa sobre os jogadores. O grau da expectativa futebolístico-messiânica é altíssimo, e não é de se espantar que o time brasileiro entre em colapso em certas situações cruciais. Aliás, isso já aconceu pelo menos três vezes: lá no Maracanazo [Copa de 1950], agora no Mineiraço, e na final de 1998 na França, depois da convulsão de Ronaldo. Não me consta que outras seleções nacionais passem pela mesma síndrome. Uma vez é um acidente. Duas, uma coincidência. Mas três é uma estrutura.
ESTADÃO - E de onde vem essa estrutura?
WISNIK - Essas partidas fazem pensar na batalha de Alcácer Quibir, em 1578, durante a qual, segundo relatos, o jovem rei português d. Sebastião foi tomado por estranha catatonia, antes de desaparecer no deserto e ter a sua volta aguardada durante séculos pelos portugueses. [...] Em 1950, a equipe, encolhida na partida final ante a enormidade do sucesso ou do fracasso inéditos, esteve paralisada abaixo do seu tamanho. Em 2014, sucumbiu ante a expectativa maciça, projetada sobre ela, por algo maior do que seu tamanho. Nos dois casos, espelhados sintomaticamente em território brasileiro, há uma resistente dificuldade de dimensionar, isto é, de encarar o real, que se junta à euforização publicitária, à cobertura da Rede Globo, aos oportunismos políticos de todo tipo e ao baixo nível médio da cultura futebolística. Tudo continua muito parecido com o ambiente que cercou a final de 1950, embora sem a mesma inocência trágica.
ESTADÃO - Você escreveu que 'a glorificação frenética de Neymar, justificada pela excepcionalidade do jogador, disfarça uma ansiedade compensatória de fundo'. Por quê?
WISNIK - Sem querer me repetir, [a figura de Neymar] ferida encarnava d. Sebastião em batalha, desaparecido do campo, mas preservado misteriosamente da desgraça explícita e ocupando mais ainda o lugar mítico do Desejado.
(O Estado de S. Paulo, 12/07/2014. Disponível em http://m.estadao.com.br/ O Estado de S. Paulo noticias/ali%C3%A1s,complexo-de-d-sebastiao,1527395,0.htm, acesso em 01/09/2014)