Dizer o que seja a arte é coisa difícil. Um sem-número
de tratados de estética debruçou-se sobre o problema,
procurando situá-lo, procurando definir o conceito. Mas,
se buscamos uma resposta clara e definitiva, decepcionamo-nos: elas são divergentes, contraditórias, além de
frequentemente se pretenderem exclusivas, propondo-se
como solução única.
Entretanto, se pedirmos a qualquer pessoa que possua um mínimo contato com a cultura para nos citar alguns exemplos de obras de arte ou de artistas, ficaremos
certamente satisfeitos. Todos sabemos que a Mona Lisa,
que a Nona sinfonia de Beethoven, que a Divina comédia,
que Guernica de Picasso ou o Davi de Michelangelo são,
indiscutivelmente, obras de arte. Assim, mesmo sem possuirmos uma definição clara e lógica do conceito, somos
capazes de identificar algumas produções da cultura em
que vivemos como sendo “arte”. Além disso, a nossa atitude diante da ideia “arte” é de admiração: sabemos que
Leonardo ou Dante são gênios e, de antemão, diante deles, predispomo-nos a tirar o chapéu. Podemos, então, ficar tranquilos: se não conseguimos
saber o que a arte é, pelo menos sabemos quais coisas
correspondem a essa ideia e como devemos nos comportar diante delas. Infelizmente, esta tranquilidade não dura
se quisermos escapar ao superficial e escavar um pouco
mais o problema. O Davi de Michelangelo é arte, e não
se discute. Entretanto, eu abro um livro consagrado a um
artista célebre do século XX, Marcel Duchamp, e vejo entre
suas obras, conservado em museu, um aparelho sanitário
de louça, absolutamente idêntico aos que existem em todos os mictórios masculinos do mundo inteiro. Ora, esse
objeto não corresponde exatamente à ideia que eu faço
da arte.
Assim, a questão que há pouco propusemos – como
saber o que é ou não é obra de arte – de novo se impõe. Já
vimos que responder com uma definição que parte da “natureza” da arte é tarefa vã. Mas, se não podemos encontrar
critérios a partir do interior mesmo da noção de obra de
arte, talvez possamos descobri-los fora dela.
Para decidir o que é ou não arte, nossa cultura possui
instrumentos específicos. Um deles, essencial, é o discurso sobre o objeto artístico, ao qual reconhecemos competência e autoridade. Esse discurso é o que proferem o
crítico, o historiador da arte, o perito, o conservador de
museu. São eles que conferem o estatuto de arte a um objeto. Nossa cultura também prevê locais específicos onde
a arte pode manifestar-se, quer dizer, locais que também
dão estatuto de arte a um objeto. Num museu, numa galeria, sei de antemão que encontrarei obras de arte; num
cinema “de arte”, filmes que escapam à “banalidade” dos
circuitos normais; numa sala de concerto, música “erudita”
etc. Esses locais garantem-me assim o rótulo “arte” às coisas que apresentam, enobrecendo-as.
Desse modo, para gáudio1 meu, posso despreocupar-
-me, pois nossa cultura prevê instrumentos que determinarão, por mim, o que é ou não arte. Para evitar ilusões, devo
prevenir que a situação não é assim tão rósea. Mas, por
ora, o importante é termos em mente que o estatuto da arte
não parte de uma definição abstrata do conceito, mas de
atribuições feitas por instrumentos de nossa cultura, dignificando os objetos sobre os quais ela recai.
(O que é arte, 2013.Adaptado.)