Estão empregados em sentido figurado os termos destacados nos seguintes trechos:
Leia o trecho do conto “A igreja do Diabo”, de Machado de
Assis (1839-1908), para responder à questão.
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se
pressa em enfiar a cogula¹ beneditina, como hábito de boa
fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele
prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas
as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o
Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito
contavam as velhas beatas. – Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites
sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o
Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que
se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens.
Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos
lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro², fazei
dele um troféu e um lábaro³
, e eu vos darei tudo, tudo, tudo,
tudo, tudo, tudo... Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo
passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na
boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância,
porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica
e deslavada. Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a
luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia,
com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada4
. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero;
sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: “Musa, canta a
cólera de Aquiles, filho de Peleu”... [...] Pela sua parte o Diabo
prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica,
pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não
faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do
mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude
principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa,
que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento. As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo
incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova
ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as
perversas e detestar as sãs. Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que
ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos homens
são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem
canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos,
outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem
nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi
a da venalidade5
. Um casuísta6
do tempo chegou a confessar
que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos.
Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu
chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal,
mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não
podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua
fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria
consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e
no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue
para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao
caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o
princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de
ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à
vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de
um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo
a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
(Contos: uma antologia, 1998.)
1cogula: espécie de túnica larga, sem mangas, usada por certos
religiosos.
2desdouro: descrédito, desonra.
3lábaro: estandarte, bandeira.
4esgalgado: comprido e estreito.
5venalidade: condição ou qualidade do que pode ser vendido.
6casuísta: pessoa que pratica o casuísmo (argumento fundamentado em
raciocínio enganador ou falso).
Gabarito comentado
Tema central da questão: Sentido figurado e identificação de figuras de linguagem — mais especificamente, a habilidade de reconhecer o emprego de metáforas e da linguagem não literal em textos literários.
Justificativa da alternativa correta (E):
Tanto em “voz que reboava nas entranhas do século” quanto em “arredá-lo do coração dos homens”, os termos destacados (“entranhas do século” e “coração dos homens”) não têm seu sentido literal. “Entranhas” refere-se, metaforicamente, ao interior profundo do tempo ou da sociedade (não aos órgãos internos); “coração” simboliza os sentimentos ou a essência do ser humano. Essas expressões são exemplos claros de metáfora, segundo Bechara (“Moderna Gramática Portuguesa”) e Cunha & Cintra, pois deslocam o significado original das palavras para um campo de semelhança que enriquece o texto.
Análise das alternativas incorretas:
A) “Boca de um espírito de negação” até pode sugerir imagem figurada (boca ≠ literal), mas no contexto indica apenas a fala desse “espírito” (sentido menos deslocado). “Furor de Aquiles”, embora poético, é tomado como qualidade real do personagem.
B) “Golpes de eloquência” é metáfora (ação física transferida à fala), mas “definição da fraude” é um sentido literal: trata-se realmente de definir o termo “fraude”.
C) “Noção que os homens tinham dele” e “ao pé de si” são expressões literais ou idiomáticas; não há emprego efetivo do sentido figurado nas duas.
D) “Sou o vosso verdadeiro pai” é metáfora (pai simbólico), contudo “virtudes aceitas” traz “virtudes” em sentido literal (qualidades morais), sem figuração.
Estratégia para a prova: Sempre que a questão cobrar “sentido figurado”, questione se seria possível interpretar o termo de modo literal naquele contexto. Palavras como “entranhas do século” e “coração dos homens” claramente transcendem o sentido imediato, evocando imagens e ideias abstratas — caracterizando o emprego de metáforas segundo a tradição das gramáticas normativas.
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