Questão d19f9574-e4
Prova:PUC-GO 2016
Disciplina:Português
Assunto:Interpretação de Textos

É da natureza do conto a ressignificação de breves e fortuitas situações, reais ou imaginárias, do que decorre uma tensão narrativa de efeito único e singular no leitor. Moacyr Scliar é conhecido, em sua produção nesse gênero, pela aguda percepção do homem em sua subjetividade e pela perspectiva crítica de sua abordagem. Sobre o conto “O mistério dos hippies desaparecidos” (Texto 7), considere as afirmações que seguem:
I - O caráter interesseiro do ser humano é um dos focos da crítica do autor.
II - O mistério referido no título sugere também o mistério próprio da natureza humana.
III - O homem de cinza encarna um tipo genérico, identificando um comportamento.
IV - A ironia, recurso comum à literatura de feição crítica, comparece no desfecho do conto.

Assinale a única alternativa que apresenta todos os itens corretos:

TEXTO 7

                   O mistério dos hippies desaparecidos

Ide ao Mercadão da Travessa do Carmo. Que vereis? O alegre, o pitoresco, o colorido. Admirai a excelente organização: cada artesão em seu quadrado, exibindo belos trabalhos.

Mas... Nada vos chama a atenção?

Não? Neste caso, pergunto-vos: onde estão os hippies da Praça Dom Feliciano? Isso mesmo, aqueles que ficavam na frente da Santa Casa. Onde estão? Não sabeis?

O homem de cinza sabe.

O homem de cinza vinha todos os dias à Praça Dom Feliciano. Ficava muito tempo olhando os hippies, que não lhe davam maior atenção. O homem, ao contrário, parecia muito interessado neles: examinava os objetos expostos, indagava por preços, por detalhes da manufatura. E anotava tudo numa caderneta de capa preta. Um dia perguntou aos hippies onde moravam. Por aí, respondeu um rapaz. Numa comuna? — perguntou o homem. Não, não era em nenhuma comuna; na realidade, estavam ao relento. O homem então disse que eles deveriam morar juntos numa comuna. Ficaria mais fácil, mais prático. O rapaz concordou. Não estava com muita vontade de falar; contudo, acrescentou, depois de uma pausa, que o problema era encontrar o lugar para a comuna.

Não é problema, disse o homem; eu tenho uma chácara lá na Vila Nova, com uma boa casa, gramados, árvores frutíferas. Se vocês quiserem, podem ficar lá. No amor? — perguntou o rapaz.

— No amor, bicho — respondeu o homem, rindo. Só quero que vocês tomem conta da casa. Os hippies confabularam entre si e resolveram aceitar. O homem levou-os — eram doze, entre rapazes e moças — à chácara, numa camioneta Veraneio. Deixou-os lá.

Durante algum tempo não apareceu. Mas, num domingo, deu as caras. Conversou com os jovens sobre a chácara, contou histórias interessantes. Finalmente, pediu para ver o que tinham feito de artesanato. Examinou as peças atentamente e disse:

— Posso dar uma sugestão? Eles concordaram. Como não haveriam de concordar? Mas foi assim que começou. O homem organizou-os em equipes: a equipe dos cintos, a equipe das pulseiras, a equipe das bolsas.

Ensinou-os a trabalhar pelo sistema de linha de montagem; racionalizou cada tarefa, cada atividade.

Disciplinou a vida deles, também. Centralizou todo o consumo de tóxicos. Fornecia drogas mediante vales, resgatados ao fim do mês, conforme a produção. Permitiu que se vestissem como desejavam, mas era rígido na escala de trabalho. Seis dias por semana, folga às quartas — nos domingos tinham de trabalhar. Nestes dias, o homem de cinza admitia visitantes na chácara, mediante o pagamento de ingressos. Um guia especialmente treinado acompanhava-os, explicando todos os detalhes acerca dos hippies, estes seres curiosos.

O homem de cinza já era muito rico, mas agora está multimilionário. É que organizou uma firma, e exporta para os Estados Unidos e para o Mercado Comum Europeu cintos, pulseiras e bolsas.

Parece que, para esses artigos, não há sobretaxa de exportações. Escreveu um livro — Minha Vida Entre os Hippies — que tem se constituído em autêntico êxito de livraria; uma adaptação para a televisão, sob forma de novela, está quase pronta. E quem ouviu a trilha sonora, garante que é um estouro.

Tem apenas um temor, este homem. É que um dos hippies, de uma hora para outra, cortou o cabelo, passou a tomar banho — e usa agora um decente terno cinza. Por enquanto ainda não se manifestou; mas trata-se — o homem de cinza está convencido disto — de um autêntico contestador.

(SCLIAR, Moacyr. Melhores contos. São Paulo: Global, 2003. p. 130-132.)

A
I e II.
B
I, II e III.
C
I, II, III e IV.
D
I e IV.

Gabarito comentado

V
Valentina MartinezMonitor do Qconcursos

Tema central: A questão avalia interpretação de texto, focando em recursos literários (como a ironia), análise de personagem-tipo e compreensão do sentido do título. Exige habilidade de identificar críticas sociais implícitas no texto e reconhecer figuras de linguagem e tipos de personagens sob a ótica da norma-padrão.

Justificativa da alternativa correta (C):

Todas as afirmações I, II, III e IV estão corretas, fundamentadas na análise textual:

I – O caráter interesseiro do ser humano é um dos focos da crítica do autor.
O “homem de cinza” se aproveita dos hippies para enriquecer, evidenciando exploração e ganância. Trata-se de uma crítica social, conceito detalhado por Celso Cunha & Lindley Cintra: a narrativa crítica, comum ao conto contemporâneo, representa conflitos e interesses sociais.

II – O mistério referido no título sugere também o mistério próprio da natureza humana.
O “mistério” vai além do desaparecimento físico dos hippies, remetendo às contradições humanas: como a rebeldia pode ser facilmente absorvida e transformada pela sociedade vigente.

III – O homem de cinza encarna um tipo genérico, identificando um comportamento.
O personagem simboliza um tipo social (empresário oportunista). Esse recurso classifica-se, conforme Massaud Moisés, como “personagem-tipo”, muito utilizado para generalizar comportamentos no texto literário.

IV – A ironia, recurso comum à literatura de feição crítica, comparece no desfecho do conto.
No final, um hippie adota os costumes do homem de cinza. Essa ironia evidencia a crítica: os contestadores também podem ser absorvidos pelo sistema que criticavam.

Análise das alternativas incorretas:

- A, B e D descartam afirmações verdadeiras ou ignoram partes fundamentais do texto, falhando em reconhecer todos os aspectos críticos e irônicos expostos pelo autor.

Estratégia para provas: Atenção para alternativas que omitem interpretações amplas. Leia o texto em busca de sentidos implícitos (ironia, metáfora, crítica social). Busque palavras-chave que revelam valores ou atitudes dos personagens.

Referência: Conforme Bechara (Moderna Gramática Portuguesa), a leitura atenta e contextual permite perceber intenções e ironias, essenciais à boa interpretação de textos literários.

Gabarito: C) I, II, III e IV

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