Questão d19a32fd-e4
Prova:PUC-GO 2016
Disciplina:Português
Assunto:Interpretação de Textos

O desfecho do Texto 7 é surpreendente e crítico. Ao dizer que “um dos hippies, de uma hora para outra, cortou o cabelo, passou a tomar banho – e usa um decente terno cinza”, o enunciador faz uso de que recurso linguístico? Assinale a resposta correta:

TEXTO 7

                   O mistério dos hippies desaparecidos

Ide ao Mercadão da Travessa do Carmo. Que vereis? O alegre, o pitoresco, o colorido. Admirai a excelente organização: cada artesão em seu quadrado, exibindo belos trabalhos.

Mas... Nada vos chama a atenção?

Não? Neste caso, pergunto-vos: onde estão os hippies da Praça Dom Feliciano? Isso mesmo, aqueles que ficavam na frente da Santa Casa. Onde estão? Não sabeis?

O homem de cinza sabe.

O homem de cinza vinha todos os dias à Praça Dom Feliciano. Ficava muito tempo olhando os hippies, que não lhe davam maior atenção. O homem, ao contrário, parecia muito interessado neles: examinava os objetos expostos, indagava por preços, por detalhes da manufatura. E anotava tudo numa caderneta de capa preta. Um dia perguntou aos hippies onde moravam. Por aí, respondeu um rapaz. Numa comuna? — perguntou o homem. Não, não era em nenhuma comuna; na realidade, estavam ao relento. O homem então disse que eles deveriam morar juntos numa comuna. Ficaria mais fácil, mais prático. O rapaz concordou. Não estava com muita vontade de falar; contudo, acrescentou, depois de uma pausa, que o problema era encontrar o lugar para a comuna.

Não é problema, disse o homem; eu tenho uma chácara lá na Vila Nova, com uma boa casa, gramados, árvores frutíferas. Se vocês quiserem, podem ficar lá. No amor? — perguntou o rapaz.

— No amor, bicho — respondeu o homem, rindo. Só quero que vocês tomem conta da casa. Os hippies confabularam entre si e resolveram aceitar. O homem levou-os — eram doze, entre rapazes e moças — à chácara, numa camioneta Veraneio. Deixou-os lá.

Durante algum tempo não apareceu. Mas, num domingo, deu as caras. Conversou com os jovens sobre a chácara, contou histórias interessantes. Finalmente, pediu para ver o que tinham feito de artesanato. Examinou as peças atentamente e disse:

— Posso dar uma sugestão? Eles concordaram. Como não haveriam de concordar? Mas foi assim que começou. O homem organizou-os em equipes: a equipe dos cintos, a equipe das pulseiras, a equipe das bolsas.

Ensinou-os a trabalhar pelo sistema de linha de montagem; racionalizou cada tarefa, cada atividade.

Disciplinou a vida deles, também. Centralizou todo o consumo de tóxicos. Fornecia drogas mediante vales, resgatados ao fim do mês, conforme a produção. Permitiu que se vestissem como desejavam, mas era rígido na escala de trabalho. Seis dias por semana, folga às quartas — nos domingos tinham de trabalhar. Nestes dias, o homem de cinza admitia visitantes na chácara, mediante o pagamento de ingressos. Um guia especialmente treinado acompanhava-os, explicando todos os detalhes acerca dos hippies, estes seres curiosos.

O homem de cinza já era muito rico, mas agora está multimilionário. É que organizou uma firma, e exporta para os Estados Unidos e para o Mercado Comum Europeu cintos, pulseiras e bolsas.

Parece que, para esses artigos, não há sobretaxa de exportações. Escreveu um livro — Minha Vida Entre os Hippies — que tem se constituído em autêntico êxito de livraria; uma adaptação para a televisão, sob forma de novela, está quase pronta. E quem ouviu a trilha sonora, garante que é um estouro.

Tem apenas um temor, este homem. É que um dos hippies, de uma hora para outra, cortou o cabelo, passou a tomar banho — e usa agora um decente terno cinza. Por enquanto ainda não se manifestou; mas trata-se — o homem de cinza está convencido disto — de um autêntico contestador.

(SCLIAR, Moacyr. Melhores contos. São Paulo: Global, 2003. p. 130-132.)

A
Ironia – a transformação do hippie em alguém semelhante ao homem de cinza contribui para que o “autêntico contestador” constitua uma ameaça aos negócios.
B
Estilização – há alteração de elementos visuais do hippie, que, necessariamente, não altera a sua essência e a sua ideologia.
C
Intertextualidade – o texto faz remissão indireta ao movimento hippie de 1960.
D
Gradação – o enunciador mostra o processo gradativo de mudança do hippie.

Gabarito comentado

A
Aline SilvaMonitor do Qconcursos

Tema central: Interpretação de texto – figuras de linguagem, especialmente o emprego da ironia como recurso de crítica e efeito surpreendente no desfecho narrativo.

Justificativa da alternativa correta (A):

No trecho analisado, observa-se claramente o uso da ironia. A ironia, segundo Bechara, consiste em expressar, intencionalmente, o oposto do que se quer dizer, geralmente com efeito crítico ou humorístico.
No texto, ao afirmar que um dos hippies “cortou o cabelo, passou a tomar banho – e usa agora um decente terno cinza”, o narrador sugere que, ao se transformar no próprio ‘homem de cinza’, esse personagem passa a ser o verdadeiro contestador. Ou seja, o componente subversivo não é mais o hippie invisível, mas sim aquele que assume “o outro lado” e, de certa maneira, ameaça a estabilidade dos negócios do homem de cinza.

Esse efeito é típico da ironia: uma aparente conformidade que, na verdade, inverte valores e confronta a expectativa do leitor, proporcionando uma crítica à padronização e à perda da identidade contestadora.

Análise das alternativas incorretas:

B) Estilização: Ocorre quando há mudança apenas na aparência, sem afetação do conteúdo ou essência. No contexto, a transformação é profunda, mudando não só o exterior mas também a percepção do papel social do personagem, o que afasta a ideia de simples estilização.

C) Intertextualidade: Relaciona-se à citação ou referência a outros textos. Embora a temática hippie remeta aos anos 1960, o efeito central desse trecho não é o diálogo com outro texto ou época, mas sim o uso irônico da situação.

D) Gradação: Consiste em apresentar ideias em sequência progressiva. No texto, a transformação do hippie ocorre bruscamente, não em etapas, eliminando a gradação como recurso principal.

Dicas para provas: Sempre leia atentamente os desfechos dos textos e identifique presença de figuras de linguagem. Questões assim costumam trabalhar a diferença entre o sentido literal e o sentido figurado, sendo a ironia uma das mais recorrentes em textos de crítica sociais.

Referência: BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa; CUNHA & CINTRA. Nova Gramática do Português Contemporâneo.

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