A capacidade de animar os velórios é atribuída ao Tico pelo velho calvo, porque este a considera
Para responder à questão, leia o fragmento de um romance de Érico Veríssimo (1905-1975).
O defunto dominava a casa com a sua presença enorme. Anoitecia, e os homens que cercavam o morto ali na sala ainda não se haviam habituado ao seu silêncio espesso.
Fazia um calor opressivo. Do quarto contíguo vinham soluços sem choro. Pareciam pedaços arrancados dum grito de dor único e descomunal, davam uma impressão de dilaceramento, de agonia sincopada.
As velas ardiam e o cheiro da cera derretida se casava com o perfume adocicado das flores que cobriam o caixão. A mistura enjoativa inundava o ar como uma emanação mesma do defunto, entrava pelas narinas dos vivos e lhes dava a sensação desconfortante duma comunhão com a morte.
O velho calvo que estava a um canto da sala, voltou a cabeça para o militar a seu lado e cochichou:
— Está fazendo falta aqui é o Tico, capitão.
O oficial ainda não conhecia o Tico. Era novo na cidade. Então o velho explicou. O Tico era um sujeito que sabia animar os velórios, contava histórias, tinha um jeito especial de levar a conversa, deixando todo o mundo à vontade. Sem o Tico era o diabo... Por onde andaria aquela alma?
Entrou um homem magro, alto, de preto. Cumprimentou com um aceno discreto de cabeça, caminhou devagarinho até o cadáver e ergueu o lenço branco que lhe cobria o rosto. Por alguns segundos fitou na cara morta os olhos tristes. Depois deixou cair o lenço, afastou-se enxugando as lágrimas com as costas das mãos e entrou no quarto vizinho.
O velho calvo suspirou.
— Pouca gente... O militar passou o lenço pela testa suada.
— Muito pouca. E o calor está brabo.
— E ainda é cedo.
O capitão tirou o relógio: faltava um quarto para as oito.
(Um lugar ao sol, 1978.)
Gabarito comentado
Tema central: Interpretação de Texto e Semântica
O comando exige do candidato a compreensão do sentido implícito atribuído à presença de Tico nos velórios, mostrado nas falas e intenções das personagens. Segundo a norma-padrão e as boas práticas de interpretação (Bechara, Moderna Gramática Portuguesa), é fundamental identificar o contexto e as relações de causa e efeito estabelecidas no texto.
Justificativa da alternativa correta – B: “conveniente para aliviar as tensões naquela situação”
O velho calvo evidencia que Tico faz falta porque “sabia animar os velórios, contava histórias, tinha um jeito especial de levar a conversa, deixando todo o mundo à vontade.” Isso indica, sem deixar dúvidas, que a habilidade de Tico era desejada para aliviar o desconforto do momento, sendo conveniente à situação. Essa leitura é confirmada pela semântica da expressão “deixar todo mundo à vontade”, ligada ao alívio de tensões.
Análise das alternativas incorretas:
A) Um meio inadequado de ganhar a vida:
Nenhum trecho sugere que Tico animava velórios profissionalmente ou que isso fosse visto como inadequado.
C) Inapropriada naquela situação social:
Na verdade, a falta de Tico é sentida exatamente porque sua presença era considerada positiva, contrapondo-se ao ambiente pesado do velório.
D) Desrespeitosa em face da tristeza geral:
O texto indica que Tico proporcionava alívio respeitoso, sem menção a desrespeito.
E) Um modo de enfatizar as virtudes do morto:
Não há ligação entre animar o velório e destacar qualidades do falecido.
Estratégia de resolução: Em questões de interpretação, busque elementos textuais explícitos e inferências a partir das falas dos personagens. Atenção a termos como “deixar à vontade”, “fazer falta”, que apontam para um desejo de conforto, não para crítica ou julgamento.
Siga sempre as referências clássicas (Cunha & Cintra) e diretrizes de redação oficial: interpretar é, acima de tudo, ler nas entrelinhas e compreender o efeito de sentido produzido pelo texto e seus elementos.
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