Em “Em face de uma trama social que se torna cada vez mais complexa, a verdade é que não há como
insistir com respostas casuísticas, provisórias e crescentemente brutais, que sintomaticamente já não
podem prescindir do apoio recorrente das Forças Armadas" (12º Parágrafo), as palavras sublinhadas
podem ser substituídas sem que haja perda de sentido, respectivamente, por:
A
indiferença com a violência nas favelas do Rio de Janeiro
O silêncio
de autoridades e instituições revela o fatalismo de uma política de segurança
pública falida
Marcelo
Baumann Burgo
A rotina de tiroteios em diversas
favelas do Rio de Janeiro tem por cenário um labirinto de casas recheadas de
seres humanos, acuados e humilhados. O quadro ultrapassa as raias do absurdo, e
nem os escritores do realismo mágico seriam capazes de imaginá-lo.
O que mais surpreende, contudo, é
o silêncio condescendente das autoridades e instituições cujo papel deveria ser
o de, antes de qualquer outra coisa, zelar pelas garantias mínimas do direito à
vida e integridade física dos cidadãos.
Mas
ao que tudo indica, para os moradores das favelas cariocas, nem mesmo esse
aspecto elementar do pacto hobbesiano tem sido preservado, o que sugere que,
para eles, a lei é a da barbárie. Na favela da Rocinha, por exemplo, desde
setembro de 2017, a cada três dias pelo menos uma pessoa – incluindo policiais
- morreu nesses confrontos.
O primeiro e mais ensurdecedor
silêncio é o do governador e das autoridades da segurança pública estaduais e
federais. No máximo, se manifestam quando algum policial é morto no “campo de batalha”,
para lamentar sua perda e reafirmar o “espírito de combate da tropa”.
Diante desse silêncio deliberado,
ficam no ar várias perguntas: como explicar o sentido de uma política de
segurança que tem como efeito real a tortura diária da população das favelas,
que se vê obrigada a conviver com um fogo cruzado intenso e aleatório? Quem
realmente responde por ela, e pelas mortes e sofrimento que ela provoca? Onde
se pretende chegar com isso? Quais as suas razões “técnicas”, se é que não é
uma ofensa às vítimas formular essa pergunta? SILÊNCIO...
Sob esse primeiro vácuo de
respostas, há um segundo nível de silêncio, o das instituições que deveriam
questionar as autoridades estaduais e federais. Cadê os poderes legislativos,
que não criam um grupo suprapartidário de parlamentares para interpelar o
governo? Neste caso, não vale alegar que estamos aguardando as próximas
eleições para “fazer o debate”, pois o sofrimento é hoje, e a morte espreita
diariamente a vida dessa população.
E o Ministério Público, que não
organiza uma força-tarefa para, tempestivamente, proteger a ordem jurídica
escandalosamente violada, com a agressão de todo tipo aos direitos fundamentais
dos cidadãos? SILÊNCIO...
Sob essa segunda e espessa camada
de silêncios, subsiste uma terceira igualmente decisiva, a da grande imprensa.
Não que ela não faça a crônica diária dos tiroteios, mas em geral as faz
descrevendo os fatos com aparente neutralidade, como se eles simplesmente
fizessem parte da rotina, não dando sinais, portanto, de que reflete sobre o
que significa informar, em uma mesma matéria, que três ou quatro pessoas
morreram ou se feriram, e que a operação teve como saldo a apreensão de “um
fuzil”, “dez trouxinhas de maconha”, e “alguns papelotes de cocaína”...
Cadê os editoriais cobrando
respostas das autoridades? Cadê o trabalho que, em outras áreas da vida
pública, por exemplo na questão da corrupção, a grande imprensa faz com tanto
zelo para mobilizar a opinião pública? No caso da rotina de tiroteios nas
favelas o que parece resultar do trabalho da grande imprensa é o oposto da
mobilização, ou seja, um efeito de resignação diante da violência ordinária.
Restaria, ainda, a sociedade civil
organizada. Cadê a OAB, CNBB, ABI, as universidades, associações de bairro, e
tantas outras que se irmanaram na luta contra a ditadura? Para ser justo com
elas, até esboçaram alguma reação, mas sem força para fazer diferença. Com
isso, tudo se passa como se esse bangue-bangue diário e estúpido dissesse
respeito apenas aos moradores das favelas. Será que devemos esperar que somente
eles se mobilizem?
Como se vê, para além de quaisquer
outras razões de ordem econômica e social, o que se passa com a (in)segurança
nos territórios populares do Rio de Janeiro deve ser creditado, antes de mais
nada, aos silêncios e omissões de diferentes autoridades e instituições. Tal
postura não deixa de revelar o quadro de fatalismo e perplexidade a que
chegamos e não por acaso! Pois não há mesmo muito a se fazer com o modelo atual
de segurança pública.
Em face de uma trama social que se
torna cada vez mais complexa, a verdade é que não há como insistir com
respostas casuísticas, provisórias e crescentemente brutais, que
sintomaticamente já não podem prescindir do apoio recorrente das Forças
Armadas.
Mas se é assim, que ao menos se
reconheça, com honestidade, a necessidade de enfrentarmos um amplo debate sobre
a reforma estrutural das instituições de segurança pública, a começar pelas
polícias civil e militar. A cada dia, sua incompatibilidade com o projeto de
democracia se mostra mais explícita.
O sofrimento de quem convive
diariamente sob a tortura da loteria dos tiroteios nos territórios populares
não terá como ser reparado, mas ainda não é tarde demais para mobilizarmos
energia para esse debate.
No caso do Rio de Janeiro, o
mínimo aceitável seria exigir que as autoridades, de um lado, contribuíssem
para precipitar esta discussão e, de outro, interrompessem imediatamente a
escalada do descalabro que elas vêm chancelando, movidas sabe-se lá por que
tipo de cálculo.
Adaptado
a partir de:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-indiferenca-com-a-violencia-nasfavelas-do-rio-de-janeiro
/. Acesso em 10 de maio de 2018.
A indiferença com a violência nas favelas do Rio de Janeiro
O silêncio de autoridades e instituições revela o fatalismo de uma política de segurança pública falida
Marcelo Baumann Burgo
A rotina de tiroteios em diversas favelas do Rio de Janeiro tem por cenário um labirinto de casas recheadas de seres humanos, acuados e humilhados. O quadro ultrapassa as raias do absurdo, e nem os escritores do realismo mágico seriam capazes de imaginá-lo.
O que mais surpreende, contudo, é o silêncio condescendente das autoridades e instituições cujo papel deveria ser o de, antes de qualquer outra coisa, zelar pelas garantias mínimas do direito à vida e integridade física dos cidadãos.
Mas ao que tudo indica, para os moradores das favelas cariocas, nem mesmo esse aspecto elementar do pacto hobbesiano tem sido preservado, o que sugere que, para eles, a lei é a da barbárie. Na favela da Rocinha, por exemplo, desde setembro de 2017, a cada três dias pelo menos uma pessoa – incluindo policiais - morreu nesses confrontos.
O primeiro e mais ensurdecedor silêncio é o do governador e das autoridades da segurança pública estaduais e federais. No máximo, se manifestam quando algum policial é morto no “campo de batalha”, para lamentar sua perda e reafirmar o “espírito de combate da tropa”.
Diante desse silêncio deliberado, ficam no ar várias perguntas: como explicar o sentido de uma política de segurança que tem como efeito real a tortura diária da população das favelas, que se vê obrigada a conviver com um fogo cruzado intenso e aleatório? Quem realmente responde por ela, e pelas mortes e sofrimento que ela provoca? Onde se pretende chegar com isso? Quais as suas razões “técnicas”, se é que não é uma ofensa às vítimas formular essa pergunta? SILÊNCIO...
Sob esse primeiro vácuo de respostas, há um segundo nível de silêncio, o das instituições que deveriam questionar as autoridades estaduais e federais. Cadê os poderes legislativos, que não criam um grupo suprapartidário de parlamentares para interpelar o governo? Neste caso, não vale alegar que estamos aguardando as próximas eleições para “fazer o debate”, pois o sofrimento é hoje, e a morte espreita diariamente a vida dessa população.
E o Ministério Público, que não organiza uma força-tarefa para, tempestivamente, proteger a ordem jurídica escandalosamente violada, com a agressão de todo tipo aos direitos fundamentais dos cidadãos? SILÊNCIO...
Sob essa segunda e espessa camada de silêncios, subsiste uma terceira igualmente decisiva, a da grande imprensa. Não que ela não faça a crônica diária dos tiroteios, mas em geral as faz descrevendo os fatos com aparente neutralidade, como se eles simplesmente fizessem parte da rotina, não dando sinais, portanto, de que reflete sobre o que significa informar, em uma mesma matéria, que três ou quatro pessoas morreram ou se feriram, e que a operação teve como saldo a apreensão de “um fuzil”, “dez trouxinhas de maconha”, e “alguns papelotes de cocaína”...
Cadê os editoriais cobrando respostas das autoridades? Cadê o trabalho que, em outras áreas da vida pública, por exemplo na questão da corrupção, a grande imprensa faz com tanto zelo para mobilizar a opinião pública? No caso da rotina de tiroteios nas favelas o que parece resultar do trabalho da grande imprensa é o oposto da mobilização, ou seja, um efeito de resignação diante da violência ordinária.
Restaria, ainda, a sociedade civil organizada. Cadê a OAB, CNBB, ABI, as universidades, associações de bairro, e tantas outras que se irmanaram na luta contra a ditadura? Para ser justo com elas, até esboçaram alguma reação, mas sem força para fazer diferença. Com isso, tudo se passa como se esse bangue-bangue diário e estúpido dissesse respeito apenas aos moradores das favelas. Será que devemos esperar que somente eles se mobilizem?
Como se vê, para além de quaisquer outras razões de ordem econômica e social, o que se passa com a (in)segurança nos territórios populares do Rio de Janeiro deve ser creditado, antes de mais nada, aos silêncios e omissões de diferentes autoridades e instituições. Tal postura não deixa de revelar o quadro de fatalismo e perplexidade a que chegamos e não por acaso! Pois não há mesmo muito a se fazer com o modelo atual de segurança pública.
Em face de uma trama social que se torna cada vez mais complexa, a verdade é que não há como insistir com respostas casuísticas, provisórias e crescentemente brutais, que sintomaticamente já não podem prescindir do apoio recorrente das Forças Armadas.
Mas se é assim, que ao menos se reconheça, com honestidade, a necessidade de enfrentarmos um amplo debate sobre a reforma estrutural das instituições de segurança pública, a começar pelas polícias civil e militar. A cada dia, sua incompatibilidade com o projeto de democracia se mostra mais explícita.
O sofrimento de quem convive diariamente sob a tortura da loteria dos tiroteios nos territórios populares não terá como ser reparado, mas ainda não é tarde demais para mobilizarmos energia para esse debate.
No caso do Rio de Janeiro, o mínimo aceitável seria exigir que as autoridades, de um lado, contribuíssem para precipitar esta discussão e, de outro, interrompessem imediatamente a escalada do descalabro que elas vêm chancelando, movidas sabe-se lá por que tipo de cálculo.
Adaptado a partir de: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-indiferenca-com-a-violencia-nasfavelas-do-rio-de-janeiro /. Acesso em 10 de maio de 2018.