Questão 74d24c78-51
Prova:UNIFESP 2018
Disciplina:Português
Assunto:Interpretação de Textos, Denotação e Conotação

• “loucura e idade, juntas, lhe lavraram o corpo” (4° parágrafo)

• “Ninguém tinha ânimo de visitá-la” (4° parágrafo)

•  “a ideia de um equilíbrio por compensação, que afogava o remorso” (5o parágrafo)


Os termos sublinhados foram empregados, respectivamente, em sentido

Leia o trecho inicial do conto “A doida”, de Carlos Drummond de Andrade, para responder à questão.


      A doida habitava um chalé no centro do jardim maltratado. E a rua descia para o córrego, onde os meninos costumavam banhar-se. Era só aquele chalezinho, à esquerda, entre o barranco e um chão abandonado; à direita, o muro de um grande quintal. E na rua, tornada maior pelo silêncio, o burro que pastava. Rua cheia de capim, pedras soltas, num declive áspero. Onde estava o fiscal, que não mandava capiná-la?

      Os três garotos desceram manhã cedo, para o banho e a pega de passarinho. Só com essa intenção. Mas era bom passar pela casa da doida e provocá-la. As mães diziam o contrário: que era horroroso, poucos pecados seriam maiores. Dos doidos devemos ter piedade, porque eles não gozam dos benefícios com que nós, os sãos, fomos aquinhoa dos. Não explicavam bem quais fossem esses benefícios, ou explicavam demais, e restava a impressão de que eram todos privilégios de gente adulta, como fazer visitas, receber cartas, entrar para irmandades. E isso não comovia ninguém. A loucura parecia antes erro do que miséria. E os três sentiam-se inclinados a lapidar1 a doida, isolada e agreste no seu jardim.

      Como era mesmo a cara da doida, poucos poderiam dizê-lo. Não aparecia de frente e de corpo inteiro, como as outras pessoas, conversando na calma. Só o busto, recortado numa das janelas da frente, as mãos magras, ameaçando. Os cabelos, brancos e desgrenhados. E a boca inflamada, soltando xingamentos, pragas, numa voz rouca. Eram palavras da Bíblia misturadas a termos populares, dos quais alguns pareciam escabrosos, e todos fortíssimos na sua cólera.

      Sabia-se confusamente que a doida tinha sido moça igual às outras no seu tempo remoto (contava mais de sessenta anos, e loucura e idade, juntas, lhe lavraram o corpo). Corria, com variantes, a história de que fora noiva de um fazendeiro, e o casamento uma festa estrondosa; mas na própria noite de núpcias o homem a repudiara, Deus sabe por que razão. O marido ergueu-se terrível e empurrou-a, no calor do bate-boca; ela rolou escada abaixo, foi quebrando ossos, arrebentando-se. Os dois nunca mais se veriam. Já outros contavam que o pai, não o marido, a expulsara, e esclareciam que certa manhã o velho sentira um amargo diferente no café, ele que tinha dinheiro grosso e estava custando a morrer – mas nos racontos2 antigos abusava-se de veneno. De qualquer modo, as pessoas grandes não contavam a história direito, e os meninos deformavam o conto. Repudiada por todos, ela se fechou naquele chalé do caminho do córrego, e acabou perdendo o juízo. Perdera antes todas as relações. Ninguém tinha ânimo de visitá-la. O padeiro mal jogava o pão na caixa de madeira, à entrada, e eclipsava-se. Diziam que nessa caixa uns primos generosos mandavam pôr, à noite, provisões e roupas, embora oficialmente a ruptura com a família
 se mantivesse inalterável. Às vezes uma preta velha arriscava-se a entrar, com seu cachimbo e sua paciência educada no cativeiro, e lá ficava dois ou três meses, cozinhando. Por fim a doida enxotava-a. E, afinal, empregada nenhuma queria servi-la. Ir viver com a doida, pedir a bênção à doida, jantar em casa da doida, passaram a ser, na cidade, expressões de castigo e símbolos de irrisão3.

      Vinte anos de uma tal existência, e a legenda está feita. Quarenta, e não há mudá-la. O sentimento de que a doida carregava uma culpa, que sua própria doidice era uma falta grave, uma coisa aberrante, instalou-se no espírito das crianças. E assim, gerações sucessivas de moleques passavam pela porta, fixavam cuidadosamente a vidraça e lascavam uma pedra. A princípio, como justa penalidade. Depois, por prazer. Finalmente, e já havia muito tempo, por hábito. Como a doida respondesse sempre furiosa, criara-se na mente infantil a ideia de um equilíbrio por compensação, que afogava o remorso.

      Em vão os pais censuravam tal procedimento. Quando meninos, os pais daqueles três tinham feito o mesmo, com relação à mesma doida, ou a outras. Pessoas sensíveis l amentavam o fato, sugeriam que se desse um jeito para internar a doida. Mas como? O hospício era longe, os parentes não se interessavam. E daí – explicava-se ao forasteiro que porventura estranhasse a situação – toda cidade tem seus doidos; quase que toda família os tem. Quando se tornam ferozes, são trancados no sótão; fora disto, circulam pacificamente pelas ruas, se querem fazê-lo, ou não, se preferem ficar em casa. E doido é quem Deus quis que ficasse doido... Respeitemos sua vontade. Não há remédio para loucura; nunca nenhum doido se curou, que a cidade soubesse; e a cidade sabe bastante, ao passo que livros mentem.

                                                                                  (Contos de aprendiz, 2012.)

1 lapidar: apedrejar.

2 raconto: relato, narrativa.

3 irrisão: zombaria.

A
literal, literal e literal.
B
figurado, literal e figurado.
C
literal, literal e figurado.
D
figurado, figurado e literal.
E
figurado, figurado e figurado.

Gabarito comentado

Y
Yago Fernandes Monitor do Qconcursos

Gabarito: B) figurado, literal e figurado.

Tema central: A questão trata da interpretação de texto, especificamente da distinção entre sentido literal e sentido figurado — conhecimento indispensável para analisar a linguagem em concursos. Segundo as gramáticas normativas (Bechara; Cunha & Cintra), sentido literal é o uso da palavra em seu significado original, enquanto o sentido figurado envolve interpretação conotativa, associando ideias de modo expressivo.

Análise dos termos:

1. “loucura e idade, juntas, lhe lavraram o corpo”:
• Lavrar significa, literalmente, arar/sulcar a terra. No trecho, “lavraram o corpo” indica que loucura e idade deixaram marcas profundas — faz-se uma associação metafórica, ou seja, sentido figurado.

2. “Ninguém tinha ânimo de visitá-la”:
Aqui, “ânimo” significa diretamente “disposição” ou “coragem”. Não há figura de linguagem, apenas o significado real. Logo, é sentido literal.

3. “a ideia de um equilíbrio... que afogava o remorso”:
Literalmente, “afogar” é submergir em água até a morte. No texto, “afogar o remorso” significa sufocar, eliminar o sentimento — é uma imagem metafórica, ou seja, sentido figurado.

Por que as outras alternativas estão incorretas?

- A) Todos os termos em sentido literal: errado, pois “lavrar” e “afogar” são figuras.
- C) “lavrar” não está em sentido literal.
- D) “ânimo” está em sentido literal, não figurado.
- E) “ânimo” não está em sentido figurado.

Estratégia para evitar pegadinhas: Leia sempre o contexto: palavras comuns podem ganhar sentidos diferentes em textos literários. Cuidado com o uso imaginativo da linguagem, que é comum em autores como Drummond.

Gramática de referência: Bechara (2015) destaca que o uso figurado é frequente em textos literários, enriquecendo a interpretação e exigindo atenção ao contexto para perceber alterações de significado.

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