Questão 50875e25-f7
Prova:UNEMAT 2016
Disciplina:Literatura
Assunto:Realismo, Escolas Literárias

I
Óbito do autor

“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Móises, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: - ‘Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a Humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à Natureza as mais íntimas entranhas: tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado’.

Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.” [...]

ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 2. ed. São Paulo; Martin Claret, 2010, página 17. PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2003.

Segundo o mexicano Octavio Paz, os elementos da ironia e do humor são marcas fundantes do romance moderno. A ironia é o elemento que consiste em exprimir o contrário daquilo que se está pensando ou sentindo, e na maioria das vezes traz um toque de sarcasmo ou depreciação, maneira também de fazer críticas a alguma situação ou a algum comportamento de alguém. O humor, enquanto isso, consiste no elemento ou construção de enunciado que aponta para o cômico, o divertido, sendo ele também uma maneira de fazer críticas.

No trecho transcrito do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, constata-se a ironia no seguinte enunciado:

A
“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar meu nascimento ou a minha morte.”
B
“Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara do Catumbi.”
C
“Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos.”
D
“Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à Natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”
E
“Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.”

Gabarito comentado

M
Mônica Cordeiro Monitor do Qconcursos

TEMA CENTRAL DA QUESTÃO:
A questão exige identificar um trecho que exemplifique a ironia no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, conforme conceituada por Octavio Paz: ironia é exprimir, com sarcasmo ou crítica, o contrário do que se pensa ou sente.

JUSTIFICATIVA DA ALTERNATIVA CORRETA (E):
Trecho: “Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.”
Neste trecho, Brás Cubas comenta sarcasticamente sobre a amizade do homem que fez um elogio emotivo em seu velório. O uso da expressão “bom e fiel amigo!” é irônico, pois a seguir o narrador sugere que a dedicação desse amigo ocorre por interesse financeiro (as vinte apólices). A estrutura do comentário inverte o sentido aparente (amizade genuína), revelando o lado interesseiro do relacionamento — exemplo clássico de ironia em que se diz uma coisa para significar justamente o oposto, crítica típica da escrita machadiana.

ANÁLISE DAS ALTERNATIVAS INCORRETAS:

A) O narrador reflete sobre o início das memórias (nascimento ou morte), mas o trecho apresenta uma indecisão estrutural, não ironia.

B) Apenas narração factual do momento da morte, sem dupla intenção ou sarcasmo.

C) O número reduzido de amigos pode ser visto como humor, mas não há inversão de sentido ou crítica indireta — não é ironia conforme o conceito da questão.

D) O discurso do amigo é exagerado, porém sem ironia expressa do narrador, apenas exaltação retórica típica dos velórios.

ESTRATÉGIA DE RESOLUÇÃO:
Para questões sobre ironia, busque frases em que o sentido literal e a intenção do autor/narrador não coincidam, privilegiando comentários onde a crítica aparece de forma sutil ou revestida de elogio. Machado de Assis utiliza esse recurso repetidamente para expor valores sociais e debilidades humanas.

Resumo:
A alternativa E exemplifica perfeitamente a ironia com o deboche disfarçado de gratidão, expondo a mesquinhez das relações humanas, enquanto as demais alternativas não apresentam esse jogo de sentidos.

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