I
Óbito do autor
“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias
pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro
lugar meu nascimento ou a minha morte. Suposto o
uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas
considerações me levaram a adotar diferente método: a
primeira é que eu não sou propriamente um autor
defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim
mais galante e mais novo. Móises, que também contou
a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo:
diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta
feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara
de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e
prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos
contos e fui acompanhado ao cemitério por onze
amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas
nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma
chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão
triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a
intercalar esta engenhosa ideia no discurso que
proferiu à beira de minha cova: - ‘Vós, que o
conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo
que a natureza parece estar chorando a perda
irreparável de um dos mais belos caracteres que têm
honrado a Humanidade. Este ar sombrio, estas gotas
do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul
como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má
que lhe rói à Natureza as mais íntimas entranhas: tudo
isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado’.
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte
apólices que lhe deixei.” [...]
ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 2. ed. São
Paulo; Martin Claret, 2010, página 17.
PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2003.
Segundo o mexicano Octavio Paz, os
elementos da ironia e do humor são marcas fundantes
do romance moderno. A ironia é o elemento que
consiste em exprimir o contrário daquilo que se está
pensando ou sentindo, e na maioria das vezes traz um
toque de sarcasmo ou depreciação, maneira também
de fazer críticas a alguma situação ou a algum
comportamento de alguém. O humor, enquanto isso,
consiste no elemento ou construção de enunciado que
aponta para o cômico, o divertido, sendo ele também
uma maneira de fazer críticas.
No trecho transcrito do romance Memórias
Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis,
constata-se a ironia no seguinte enunciado:
Gabarito comentado
TEMA CENTRAL DA QUESTÃO:
A questão exige identificar um trecho que exemplifique a ironia no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, conforme conceituada por Octavio Paz: ironia é exprimir, com sarcasmo ou crítica, o contrário do que se pensa ou sente.
JUSTIFICATIVA DA ALTERNATIVA CORRETA (E):
Trecho: “Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.”
Neste trecho, Brás Cubas comenta sarcasticamente sobre a amizade do homem que fez um elogio emotivo em seu velório. O uso da expressão “bom e fiel amigo!” é irônico, pois a seguir o narrador sugere que a dedicação desse amigo ocorre por interesse financeiro (as vinte apólices). A estrutura do comentário inverte o sentido aparente (amizade genuína), revelando o lado interesseiro do relacionamento — exemplo clássico de ironia em que se diz uma coisa para significar justamente o oposto, crítica típica da escrita machadiana.
ANÁLISE DAS ALTERNATIVAS INCORRETAS:
A) O narrador reflete sobre o início das memórias (nascimento ou morte), mas o trecho apresenta uma indecisão estrutural, não ironia.
B) Apenas narração factual do momento da morte, sem dupla intenção ou sarcasmo.
C) O número reduzido de amigos pode ser visto como humor, mas não há inversão de sentido ou crítica indireta — não é ironia conforme o conceito da questão.
D) O discurso do amigo é exagerado, porém sem ironia expressa do narrador, apenas exaltação retórica típica dos velórios.
ESTRATÉGIA DE RESOLUÇÃO:
Para questões sobre ironia, busque frases em que o sentido literal e a intenção do autor/narrador não coincidam, privilegiando comentários onde a crítica aparece de forma sutil ou revestida de elogio. Machado de Assis utiliza esse recurso repetidamente para expor valores sociais e debilidades humanas.
Resumo:
A alternativa E exemplifica perfeitamente a ironia com o deboche disfarçado de gratidão, expondo a mesquinhez das relações humanas, enquanto as demais alternativas não apresentam esse jogo de sentidos.
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