No fragmento da crônica, publicada pela primeira vez em
1921, o cronista considerava que:
Para chegar ao soberbo resultado de transformar a banha
em fibra, aí vem o futebol.
Mas por que o futebol?
Não seria, porventura, melhor exercitar-se a mocidade
em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro,
o cacete, a faca de ponta, por exemplo?
Não é que me repugne a introdução de coisas exóticas
entre nós. Mas gosto de indagar se elas serão assimiláveis
ou não.
No caso afirmativo, seja muito bem-vinda a instituição
alheia, fecundemo-la, arranjemos nela um filho híbrido que
possa viver cá em casa. De outro modo, resignemo-nos às
broncas tradições dos sertanejos e dos matutos. Ora, parece-
-me que o futebol não se adapta a estas boas paragens do
cangaço. É roupa de empréstimo, que não nos serve.
Para que um costume intruso possa estabelecer-se definitivamente
em um país é necessário, não só que se harmonize
com a índole do povo que o vai receber, mas que o
lugar a ocupar não esteja tomado por outro mais antigo, de
cunho indígena. É preciso, pois, que vá preencher uma lacuna,
como diz o chavão.
O do futebol não preenche coisa nenhuma, pois já temos
a muito conhecida bola de palha de milho, que nossos amadores
mambembes1
jogam com uma perícia que deixaria o
mais experimentado sportman britânico de queixo caído.
Os campeões brasileiros não teriam feito a figura triste
que fizeram em Antuérpia se a bola figurasse nos programas
das Olimpíadas e estivessem a disputá-la quatro sujeitos de
pulso. Apenas um representante nosso conseguiu ali distinguir-se,
no tiro de revólver, o que é pouco lisonjeiro para a
vaidade de um país em que se fala tanto. Aqui seria muito
mais fácil o indivíduo salientar-se no tiro de espingarda umbiguda,
emboscado atrás de um pau.
Temos esportes em quantidade. Para que metermos o
bedelho em coisas estrangeiras?
O futebol não pega, tenham a certeza. Não vale o argumento
de que ele tem ganho terreno nas capitais de importância.
Não confundamos.
As grandes cidades estão no litoral; isto aqui é diferente,
é sertão.
As cidades regurgitam de gente de outras raças ou que
pretende ser de outras raças; nós somos mais ou menos botocudos,
com laivos de sangue cabinda e galego.
Nas cidades os viciados elegantes absorvem o ópio, a
cocaína, a morfina; por aqui há pessoas que ainda fumam
liamba².
1 mambembe: medíocre, reles, de baixa condição.
2 liamba: cânhamo, maconha.
(Linhas tortas, 1971.)
Gabarito comentado
Tema central: Interpretação de texto, com foco na identificação crítica das ideias principais e no reconhecimento de argumentos, ironia e contexto cultural.
Análise da alternativa correta – B) “No sertão, seria recomendável a prática de esportes genuinamente nacionais.”
O cronista questiona a adequação do futebol, um esporte estrangeiro, ao sertão, sugerindo que os costumes locais são mais compatíveis com atividades típicas e tradicionais. Ao comentar sobre esportes como a “bola de palha de milho”, o autor defende que práticas nacionais dialogam melhor com a cultura regional, revelando, por ironia e crítica, a importância de valorizar esportes “de casa”.
Estratégia de interpretação: Identifique palavras-chave e o tom do texto. Expressões como “é roupa de empréstimo, que não nos serve” e “resignemo-nos às broncas tradições dos sertanejos” sinalizam a defesa da valorização de costumes nacionais. Segundo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa), a compreensão do texto exige atenção a elementos implícitos e ironias.
Análise das alternativas incorretas:
A) Incorreta: O autor ironiza o fraco desempenho dos brasileiros nas Olimpíadas, afirmando que a participação foi “triste” e nada destacada no futebol, portanto, oposta ao enunciado.
C) Incorreta: O texto não caracteriza o brasileiro como indolente ou avesso a esportes internacionais, apenas debate a adequação cultural do futebol ao sertão.
D) Incorreta: Não há condenação total aos estrangeirismos. O autor pondera que, se assimiláveis à cultura local, podem ser bem-vindos.
E) Incorreta: A menção ao consumo de drogas nas cidades não é apresentada como causa da adoção de esportes exóticos, mas como contraste de costumes urbanos e rurais.
Dica para provas: Atenção à inferência e à ironia! O candidato deve reconhecer críticas sutis e distinguir opiniões defendidas de exemplos meramente ilustrativos ou satíricos. Sempre relacione argumentos do autor com o contexto cultural e expressões-chave.
Em suma, a chave da questão está em perceber que o cronista propõe o resgate de esportes genuinamente nacionais no sertão como oposição à imposição do futebol, esporte com raízes estrangeiras. Esse raciocínio é respaldado por regras de coerência textual e análise semântica, conforme Cunha & Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo).
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