Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios,
nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na
verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava
sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui
percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se
intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me
senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem
nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou
igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo
isso "fosse mesmo" o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de
sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria
acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a
intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas
muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que
se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e
reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim
como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do
mundo era o meu amor apenas livre. E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um
segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo
estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo
grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro
quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não
queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo,
de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo
desmesurado de ratos.
LISPECTOR, Clarice. Perdoando Deus. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 41.
O fragmento evidencia as percepções iniciais da personagem narradora. Tais
percepções, no desenrolar do conto, são caracterizadas pela
Gabarito comentado
Tema central da questão: Interpretação de Texto — identificação do tema principal, análise de sentimentos e reflexões apresentados pela narradora.
Justificativa da alternativa correta (A):
A alternativa A) Indagação a respeito da existência humana é a correta porque toda a construção do texto gira em torno da reflexão e do sentimento profundo da narradora sobre sua liberdade existencial, o sentido da vida, o afeto universal e o questionamento do seu papel no mundo e perante o divino.
Note que ela não apenas narra sensações passageiras: há uma busca instintiva para compreender a própria existência e o universo ao seu redor. Essa característica é marcada pelo uso de expressões como “sentimento de que nunca ouvi falar”, “carinho por Deus”, e pela reflexão sobre o amor e a liberdade. Segundo Celso Cunha & Lindley Cintra, identificar o tema exige captar o fio condutor da narrativa, ou seja, aquilo que move as ideias do texto.
Análise das alternativas incorretas:
B) Crescente soberba em relação aos semelhantes — Incorreta: A narradora apresenta humildade e delicadeza; seu suposto “carinho maternal” por Deus e pela Terra é vacilante e desprovido de superioridade, como ela mesma ressalta: “sem nenhuma prepotência ou glória”.
C) Assimilação de variadas experiências grotescas — Incorreta: No texto, só há uma experiência grotesca relatada (o rato morto). O foco não é colecionar momentos repulsivos, mas sim revelar a quebra abrupta do estado de introspecção.
D) Intensificação do asco ao animal em decomposição — Incorreta: Apesar do medo e pânico diante do rato, o texto não dá ênfase ao “asco” em si, mas à ruptura da liberdade da narradora e ao retorno súbito à “realidade crua” do cotidiano. O terror serve de contraponto ao instante poético de lucidez, não ao sentimento de repulsa pura.
Estratégia para questões de interpretação:
Procure identificar palavras-chave ou trechos que expressem reflexão, emoção ou análise existencial. A alternativa correta costuma ser aquela que traduz o sentido implícito do texto, não apenas a descrição superficial dos acontecimentos.
Evite respostas que explicitem sentimentos ou fatos isolados (pegadinhas): busque sempre o que está no fundamento do texto.
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