A fala “rema, bobalhão!” (último parágrafo) sugere, por parte
do narrador,
Leia o conto “A moça rica”, de Rubem Braga (1913-1990),
para responder à questão.
A madrugada era escura nas moitas de mangue, e eu
avançava no batelão1
velho; remava cansado, com um resto
de sono. De longe veio um rincho2
de cavalo; depois, numa
choça de pescador, junto do morro, tremulou a luz de uma
lamparina.
Aquele rincho de cavalo me fez lembrar a moça que eu
encontrara galopando na praia. Ela era corada, forte. Viera
do Rio, sabíamos que era muito rica, filha de um irmão de
um homem de nossa terra. A princípio a olhei com espanto,
quase desgosto: ela usava calças compridas, fazia caçadas,
dava tiros, saía de barco com os pescadores. Mas na segunda
noite, quando nos juntamos todos na casa de Joaquim
Pescador, ela cantou; tinha bebido cachaça, como todos nós,
e cantou primeiro uma coisa em inglês, depois o Luar do sertão
e uma canção antiga que dizia assim: “Esse alguém que
logo encanta deve ser alguma santa”. Era uma canção triste.
Cantando, ela parou de me assustar; cantando, ela deixou
que eu a adorasse com essa adoração súbita, mas tímida,
esse fervor confuso da adolescência – adoração sem esperança,
ela devia ter dois anos mais do que eu. E amaria o
rapaz de suéter e sapato de basquete, que costuma ir ao Rio,
ou (murmurava-se) o homem casado, que já tinha ido até à
Europa e tinha um automóvel e uma coleção de espingardas
magníficas. Não a mim, com minha pobre flaubert 3
, não a
mim, de calça e camisa, descalço, não a mim, que não sabia
lidar nem com um motor de popa, apenas tocar um batelão
com meu remo.
Duas semanas depois que ela chegou é que a encontrei
na praia solitária; eu vinha a pé, ela veio galopando a cavalo;
vi-a de longe, meu coração bateu adivinhando quem poderia
estar galopando sozinha a cavalo, ao longo da praia, na
manhã fria. Pensei que ela fosse passar me dando apenas
um adeus, esse “bom-dia” que no interior a gente dá a quem
encontra; mas parou, o animal resfolegando e ela respirando
forte, com os seios agitados dentro da blusa fina, branca.
São as duas imagens que se gravaram na minha memória,
desse encontro: a pele escura e suada do cavalo e a seda
branca da blusa; aquela dupla respiração animal no ar fino
da manhã.
E saltou, me chamando pelo nome, conversou comigo.
Séria, como se eu fosse um rapaz mais velho do que ela, um
homem como os de sua roda, com calças de “palm-beach”,
relógio de pulso. Perguntou coisas sobre peixes; fiquei com
vergonha de não saber quase nada, não sabia os nomes dos
peixes que ela dizia, deviam ser peixes de outros lugares
mais importantes, com certeza mais bonitos. Perguntou se a
gente comia aqueles cocos dos coqueirinhos junto da praia –
e falou de minha irmã, que conhecera, quis saber se era verdade
que eu nadara desde a ponta do Boi até perto da lagoa.
De repente me fulminou: “Por que você não gosta de
mim? Você me trata sempre de um modo esquisito...” Respondi,
estúpido, com a voz rouca: “Eu não”.
Ela então riu, disse que eu confessara que não gostava
mesmo dela, e eu disse: “Não é isso.” Montou o cavalo, perguntou
se eu não queria ir na garupa. Inventei que precisava
passar na casa dos Lisboa. Não insistiu, me deu um adeus
muito alegre; no dia seguinte foi-se embora.
Agora eu estava ali remando no batelão, para ir no Severone
apanhar uns camarões vivos para isca; e o relincho distante
de um cavalo me fez lembrar a moça bonita e rica. Eu
disse comigo – rema, bobalhão! – e fui remando com força,
sem ligar para os respingos de água fria, cada vez com mais
força, como se isto adiantasse alguma coisa.
(Os melhores contos, 1997.)
1 batelão: embarcação movida a remo.
2 rincho: relincho.
3 flaubert: um tipo de espingarda.
Leia o conto “A moça rica”, de Rubem Braga (1913-1990), para responder à questão.
A madrugada era escura nas moitas de mangue, e eu avançava no batelão1 velho; remava cansado, com um resto de sono. De longe veio um rincho2 de cavalo; depois, numa choça de pescador, junto do morro, tremulou a luz de uma lamparina.
Aquele rincho de cavalo me fez lembrar a moça que eu encontrara galopando na praia. Ela era corada, forte. Viera do Rio, sabíamos que era muito rica, filha de um irmão de um homem de nossa terra. A princípio a olhei com espanto, quase desgosto: ela usava calças compridas, fazia caçadas, dava tiros, saía de barco com os pescadores. Mas na segunda noite, quando nos juntamos todos na casa de Joaquim Pescador, ela cantou; tinha bebido cachaça, como todos nós, e cantou primeiro uma coisa em inglês, depois o Luar do sertão e uma canção antiga que dizia assim: “Esse alguém que logo encanta deve ser alguma santa”. Era uma canção triste.
Cantando, ela parou de me assustar; cantando, ela deixou que eu a adorasse com essa adoração súbita, mas tímida, esse fervor confuso da adolescência – adoração sem esperança, ela devia ter dois anos mais do que eu. E amaria o rapaz de suéter e sapato de basquete, que costuma ir ao Rio, ou (murmurava-se) o homem casado, que já tinha ido até à Europa e tinha um automóvel e uma coleção de espingardas magníficas. Não a mim, com minha pobre flaubert 3 , não a mim, de calça e camisa, descalço, não a mim, que não sabia lidar nem com um motor de popa, apenas tocar um batelão com meu remo.
Duas semanas depois que ela chegou é que a encontrei na praia solitária; eu vinha a pé, ela veio galopando a cavalo; vi-a de longe, meu coração bateu adivinhando quem poderia estar galopando sozinha a cavalo, ao longo da praia, na manhã fria. Pensei que ela fosse passar me dando apenas um adeus, esse “bom-dia” que no interior a gente dá a quem encontra; mas parou, o animal resfolegando e ela respirando forte, com os seios agitados dentro da blusa fina, branca. São as duas imagens que se gravaram na minha memória, desse encontro: a pele escura e suada do cavalo e a seda branca da blusa; aquela dupla respiração animal no ar fino da manhã.
E saltou, me chamando pelo nome, conversou comigo. Séria, como se eu fosse um rapaz mais velho do que ela, um homem como os de sua roda, com calças de “palm-beach”, relógio de pulso. Perguntou coisas sobre peixes; fiquei com vergonha de não saber quase nada, não sabia os nomes dos peixes que ela dizia, deviam ser peixes de outros lugares mais importantes, com certeza mais bonitos. Perguntou se a gente comia aqueles cocos dos coqueirinhos junto da praia – e falou de minha irmã, que conhecera, quis saber se era verdade que eu nadara desde a ponta do Boi até perto da lagoa.
De repente me fulminou: “Por que você não gosta de mim? Você me trata sempre de um modo esquisito...” Respondi, estúpido, com a voz rouca: “Eu não”.
Ela então riu, disse que eu confessara que não gostava mesmo dela, e eu disse: “Não é isso.” Montou o cavalo, perguntou se eu não queria ir na garupa. Inventei que precisava passar na casa dos Lisboa. Não insistiu, me deu um adeus muito alegre; no dia seguinte foi-se embora.
Agora eu estava ali remando no batelão, para ir no Severone apanhar uns camarões vivos para isca; e o relincho distante de um cavalo me fez lembrar a moça bonita e rica. Eu disse comigo – rema, bobalhão! – e fui remando com força, sem ligar para os respingos de água fria, cada vez com mais força, como se isto adiantasse alguma coisa.
(Os melhores contos, 1997.)
1 batelão: embarcação movida a remo.
2 rincho: relincho.
3 flaubert: um tipo de espingarda.