Leia o texto abaixo e responda a questão.
TEXTO II
UM APÓLOGO
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de
linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si,
toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa
neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe
digo que está com um ar insuportável Repito que sim, e
falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é
agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu
ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com
a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites
de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose?
Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso,
prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou
adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao
que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um
papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o
caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é
que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da
baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de
uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não
andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano,
pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na
agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando
orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das
sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos
de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a
agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há
pouco? Não repara que esta distinta costureira só se
importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela,
unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto
pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa,
como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras
loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta,
calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na
saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plicplic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou
a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no
outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando
o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A
costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha
espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E
enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de
um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando,
abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha,
perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no
corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da
elegância? Quem é que vai dançar com ministros e
diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da
costureira, antes de ir para o balaio das
mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete,
de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à
pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho
para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho
para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia,
que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha
ordinária!
ASSIS, Machado de. Para Gostar de Ler - Volume 9 – Contos. São
Paulo: Ática, 1984.