Leia a abertura e um trecho final da crônica É chato ser brasileiro!, de Nélson Rodrigues.

Dizem que o Brasil tem analfabetos demais. E, no entanto, vejam vocês: – a vitória final, na Copa da Suécia, operou o milagre. Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo, da Suécia, veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo, aqui, sofreu uma alfabetização súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com ―x‖ iam ler a vitória no jornal. Sucedeu essa coisa sublime: — analfabetos natos e hereditários devoravam vespertinos, matutinos, revistas, e liam tudo com uma ativa, uma devoradora curiosidade, que ia do ―lance a lance‖ da partida até os anúncios de missa. Amigos, nunca se leu e, digo mais, nunca se releu tanto no Brasil.

E a quem devemos tanto? Ao escrete, amigos, ao escrete, que, hoje, é o meu personagem da semana, múltiplo personagem. Personagem meu, do Brasil e do mundo. Graças aos 22 jogadores, que formaram a maior equipe de futebol da Terra, em todos os tempos, graças a esses jogadores, dizia eu, o Brasil descobriu-se a si mesmo. Os simples, os bobos, os tapados hão de querer sufocar a vitória nos seus limites estritamente esportivos. Ilusão! Os 5 x 2, lá fora, contra tudo e contra todos, são um maravilhoso triunfo vital de todos nós e de cada um de nós. Do presidente da República ao apanhador de papel, do ministro do Supremo ao pé-rapado, todos, aqui, percebem o seguinte: — é chato ser brasileiro!

(...)

Outra característica da jornada: — o brasileiro sempre se achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: — o verdadeiro inglês, o único inglês, é o brasileiro.

Sobre a crônica, considere as seguintes afirmações.

I - A vitória na Copa do Mundo de Futebol, na Suécia, em 1958, manteve o sentimento de inferioridade do brasileiro em relação ao inglês.

II - O cronista destaca o efeito da vitória da seleção brasileira de futebol como forma de superar o sentimento de inferioridade.

III- A vitória e o reconhecimento de Didis e Pelés permitiram ao Brasil descobrir a si mesmo.

Quais estão corretas?

Tema central: A questão avalia a capacidade de leitura crítica e interpretação textual, explorando o efeito simbólico da vitória brasileira na Copa de 1958 e sua relação com o sentimento nacional de autoestima.

Conceitos essenciais: É fundamental compreender o contexto do chamado "complexo de vira-lata", expressão criada por Nelson Rodrigues para apontar o sentimento de inferioridade do brasileiro frente a outras nações, especialmente aos ingleses, considerados modelos de civilidade. A crônica trabalha a superação desse complexo a partir do êxito futebolístico.

Justificativa da alternativa correta (D - Apenas II e III):

É necessário identificar no texto as relações de superação do sentimento de inferioridade e descoberta da identidade nacional:

• Afirmação II: Correta. O cronista enfatiza que a vitória permitiu ao brasileiro superar o sentimento de ser “menos” que outros povos, destacando que até o “analfabeto” buscou informação e que “nunca se leu tanto”. Estratégia de interpretação: repare no tom irônico e crítico, mas também celebratório da transformação da autoimagem nacional.
• Afirmação III: Correta. O texto diz claramente que “o Brasil descobriu-se a si mesmo” por meio da vitória, reconhecendo seu valor, inclusive para além dos limites esportivos, conforme aponta o autor.

Análise das incorretas:

• Afirmação I: Incorreta. Atenção à diferença entre “manter” e “superar”. O texto mostra justamente a inversão da visão brasileira: antes vista com inferioridade em relação ao inglês, agora passava a ser referência (“o verdadeiro inglês é o brasileiro”). Cuidado com a leitura superficial de expressões irônicas ou ambíguas: muitos candidatos erram ao não perceber a ironia rodriguiana.

Estratégias de prova: Em textos opinativos ou crônicas, destaque trechos que mostrem transformação de perspectiva, especialmente quando há contraposição entre o “antes” e o “depois”. Busque expressões como “descobriu-se”, “superou-se”, “ilusão”, que são-chave para entender a posição do autor.

Referências teóricas: Autores como Antonio Candido (O discurso e a cidade) e Alfredo Bosi destacam o papel da crônica na reflexão sobre a identidade nacional, dialogando com o tom irônico e crítico de Nelson Rodrigues.

Resumo final: Os itens II e III estão corretos, pois expressam a ideia da superação do complexo de inferioridade e a busca da identidade nacional, elementos centrais no texto analisado. O item I erra ao sugerir que o sentimento negativo foi mantido.

Gostou do comentário? Deixe sua avaliação aqui embaixo!